Observatório Psicanalítico – 107/2019
Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.
A estupidez vem à tona
Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP)
Em 1961, Jânio Quadros renunciou à presidência para a qual fora eleito com a promessa de varrer a corrupção. Esperava ser reconduzido ao cargo nos braços do povo, o que não veio a acontecer. A posse do vice João Goulart, visto com reserva pelos ministros militares, foi muito tumultuada e só se deu com a instituição do parlamentarismo, que restringiria seu poder. Posteriormente, através de plebiscito, Goulart conseguiu a volta do presidencialismo, o que reforçou as resistências ao seu plano de reformas (agrária, fiscal, eleitoral e educacional).
O mundo vivia a guerra fria. O Brasil reproduzia o conflito, com o Exército, a classe média e o empresariado temendo o fantasma vermelho. Neste contexto, em março de 1964, organizou-se em São Paulo a “Marcha da família com Deus pela liberdade”, cuja meta consistia em alertar a todos contra o iminente perigo da chegada do comunismo, que setores conservadores consideravam ser a intenção do presidente. Em meio a uma grande turbulência política, eclodiu a movimentação militar de 31/03/1964, que culminou com a deposição de Goulart. Seu cargo foi declarado vago em 02/04/1964 e ele partiu para o exílio no Uruguai.
Desta maneira, os militares assumiram o poder. Em 1965 foram canceladas as eleições presidenciais, em que o favorito era um civil, o ex-presidente Juscelino Kubitschek.
Em dezembro de 1968 foi promulgado o AI-5, ato institucional que decretou o recesso do Congresso e dava ao governo o direito de cassar mandatos e suspender direitos políticos. Os meios de comunicação passaram a ser fortemente censurados.
Em 1970 alcançou estrondoso sucesso uma música de apelo ufanista: “Eu te amo, meu Brasil!”. A letra exaltava a nação, alimentando um entusiasmo acrítico, potencializado pela conquista do tricampeonato mundial pela seleção brasileira de futebol. O êxito esportivo foi capitalizado pelo regime, servindo à finalidade de minimizar as acusações de repressão, prisão e tortura de pessoas taxadas como subversivas. Sim, a esta altura já existiam opositores organizados em grupos de diversas tendências de esquerda. Alguns, de fato, partiram para a luta armada, resultando em assaltos a bancos e sequestros. Vivenciar aquela situação de fechamento alimentava em muitos jovens o desejo de um modelo oposto ao vigente, com a idealização do sistema socialista. A adesão fervorosa e irredutível ao socialismo, a bem da verdade, passava ao largo de uma análise realista do aspecto totalitário da União Soviética. Por esta época, cunhou-se a palavra de ordem de enaltecimento incondicional do país: “Brasil, ame-o ou deixe-o!”.
Toda uma geração de contemporâneos meus não votou em eleições diretas para presidente por cerca de vinte anos. Somente em 1989 pudemos exercer este direito, quando completada a transição para a democracia.
Pensei neste retrospecto logo que se esboçou uma tentativa canhestra de reconstruir nossa história recente, procurando relativizar a existência de uma ditadura no Brasil. No máximo, teria sido uma “ditadura do bem”.
Orwell, em seu livro “1984”, descrevia um Ministério da Verdade, encarregado de reescrever os jornais e documentos antigos, de modo a apoiar o Grande Irmão, comandante supremo do Partido.
A configuração esquizoparanoide exibe traços de arrogância, onipotência, onisciência e ódio à realidade, característicos de mentes primitivas. Sociedades também adoecem e padecem das agruras deste funcionamento tendente ao psicótico. Freud, em “Mal-estar na cultura”, analisando a destrutividade do ser humano, relembra que, frequentemente, a barbárie derrota a civilização. Atualmente, pelo mundo afora, líderes políticos radicais pregam ideias preconceituosas e reacionárias. Consequentemente, seus seguidores se sentem autorizados a atuar as facetas mais deploráveis da estupidez humana.
A alternância para a posição depressiva pressupõe o amadurecimento, com a possibilidade de compreender as situações no seu todo, percebendo nuances, discernindo matizes e escapando da nefasta opção maniqueísta por extremismos cegos. Neste sentido, observamos o promissor uso da capacidade de pensar e processar emoções no movimento de 15 de maio, em prol da educação. Saíram às ruas manifestantes de um amplo espectro ideológico, abrigando indivíduos de distintos posicionamentos políticos. Deixaram de lado o “narcisismo de pequenas diferenças” e convergiram para um objetivo prioritário. O foco era contestar o contingenciamento de verbas – e o seu significado mais profundo – em área fundamental para o desenvolvimento nacional.
Mais do que nunca, faz-se necessário usar os recursos de nossa parte pensante, ameaçada por forças que pretendem subjugá-la.
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