Observatório Psicanalítico – 190/2020
Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.
A criança convoca a psicanálise
Maria Elisabeth Cimenti (SPPA)
“Como diz Leila Diniz
Homem tem que ser durão…”
Dos Tremendões!
Quem, tendo sido adolescente nos anos 60 e a seguir, não cantarolou essa música? Cantávamos, despreocupadamente, quase no automático de tanto a escutarmos nas rádios de todo o Brasil. E a ditadura acontecendo.
Pois hoje podemos pensar nessa música assoviada mecanicamente. Como se conseguia cantar, enfatizando traços deste tipo com tamanha naturalidade? Quem disse que homem tem que ser durão?! Traços como estes, estimulados nos homens e nas mulheres, desde muito pequenos, dão até hoje sustentação a uma cultura colonialista e patriarcal. Talvez pudéssemos falar em um “machismo estrutural”, que induz à repetição de acontecimentos trágicos, reforçando essa permissividade alienada que segue constrangendo nossa cultura e atinge tão brutalmente as mulheres e as meninas.
Essa semana que passou foi marcada por um fato que escandalizou a todos. Uma menina de dez anos ficou grávida no interior do estado do Espírito Santo. Essa constatação a levou a revelar que seu tio a violava desde os seis anos. Durante quatro anos essa criança foi vítima de abusos repetidos, obrigada a ser objeto de satisfação dos desejos de um adulto abusador. Nunca revelou nada por medo de ser morta, já que ele a ameaçava disso, caso falasse. Portanto, essa criança, além de ser abusada, vivia sob ameaça.
O aborto é garantido por lei a toda mulher estuprada, sem necessidade de autorização judicial prévia. No caso de uma criança menor de catorze anos, qualquer relação sexual com um adulto é considerada estupro. Tendo a menina dez anos, cabe dizer ainda que o corpo não está preparado para uma gestação e parto – ela pode morrer por isso e, em casos de risco de vida para a mãe, o aborto também é permitido. O caso foi, assim, um festival de descumprimento da lei. Segundo o jornal El País, Damares, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, declarou nas redes sociais que iria ajudá-la. Ajudá-la, o que seria?! Se ela estava com mais de três meses de gravidez, precisava de um aborto seguro e isso não lhe estava sendo proporcionado. Após o transcurso em julgado, a Justiça se pronunciou a favor do aborto, mas os médicos do Espírito Santo se recusaram a fazê-lo. A Justiça encaminhou a menina para um hospital de referência em Recife. Entretanto, religiosos fundamentalistas se reuniram em frente ao hospital protestando “em defesa à família”. Afinal, que família é essa? Como essas pessoas ditas religiosas tem coragem de ameaçar ainda essa criança como se criminosa fosse? A que ponto chega essa visão patriarcal fanática-religiosa?
E como ajudar uma criança violada? Um aborto, mesmo que necessário como esse, já é um processo violento para ela, que ainda sofre ameaças e gritos de protestos (insultos?) frente ao que ela está vivendo por uma população fanática e desmedida. E ainda, após algumas andanças em abrigos ou casas lares, provavelmente retorne à casa de sua família extensiva, ficando novamente exposta à situação de risco, desta vez das ameaças de fanáticos furiosos, fundamentalistas. A constatação da inversão de valores e medidas de proteção à criança é desalentadora.
Sabemos, ademais, que não é somente essa menina que está exposta a essas atrocidades “invisíveis”. Milhares de crianças brasileiras sofreram ou sofrem esse tipo ou outra forma de maltrato. E como se sente essa criança maltratada, abusada e ameaçada? Quem trabalha com crianças que acabam institucionalizadas, sabe que elas têm plena consciência de sua vulnerabilidade e risco, embora nada possam fazer, a não ser aceitar.
As crianças, cujas figuras parentais não conseguem exercer suas funções e não tem substitutos, ficam totalmente à mercê de qualquer um que se apresente em sua vida como agente protetor ou abusador.
Lembro de uma menina que atendi há alguns anos e que gritava: “Eu quero minha mãe!”. Mas esse chamado era tão estridentemente agudo que feria o ouvido de quem escutava, e ressoava como um grito de quem sabe o que é não ter o cuidado da função materna genuína. Ela sabia que somente se fosse amada seria cuidada e protegida. Do contrário, ficaria assujeitada ao desejo do outro desumanizador. A condição de ser criança e, portanto, dependente, a coloca no lugar de ter um adulto responsável que a proteja. E isso sempre foi negligenciado. Até o século XIX, a infância não era considerada como tendo direitos. O caso Mary Ellen em Nova York foi paradigmático. Essa menina foi maltratada atrozmente por seus pais adotivos por anos, até que uma missionária metodista visitou a família e percebeu a atrocidade que estava sendo cometida contra ela. Decidiu buscar ajuda legal, mas não encontrou nenhuma instituição protetiva da infância. Recorreu a uma sociedade protetora dos animais para conseguir livrar a menina do seu cativeiro. Foi julgada a situação como se a menina fosse um animal humano, somente assim essa criança pode ser livrada do maltrato que lhe era imposto.
Além de se pensar no lugar da criança, da mulher e da cultura colonialista e opressora fanatizada em que vivemos, podemos nos interrogar sobre o lugar da psicanálise frente a tudo isso. Até que ponto a psicanálise também não está sofrendo impedimentos e limitações em seu saber e seu fazer?
A Psicanálise pode representar o espaço no qual o sujeito social seria des-oprimido e des-violentado. O lugar da palavra e da humanização, no qual as cicatrizes possam ser metaforizadas e as violências sofridas possam criar novas formas imaginárias que proporcionem representações simbólicas inventivas.
O des-acorrentamento da escuta analítica de espaços impostos e saberes estabelecidos permitirá um olhar para o sofrimento sem limites instituídos. Poder olhar sem nada saber e desejando encontrar o novo, talvez seja uma saída para se descobrir onde se encontra a dor das pessoas e os dilemas de sua relação com o outro. Nada tem maior frescor que a infância – e ela necessita também do olhar psicanalítico nesse momento atordoador. Aí a psicanálise tem muito a construir e pode aplicar sua potência.
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).
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