A branquitude está em pauta!

Observatório Psicanalítico – OP 222/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

 

A branquitude está em pauta!

Josimara Magro Fernandez de Souza (SBPRP)

 

“O ano de 2020 foi fundamental para o movimento negro do Brasil que, depois de uma longa história de lutas em prol da negritude, que remetem ao tempo da escravidão, tem conseguido de forma firme e consistente despertar em uma parcela do povo branco sua responsabilidade com as origens, desenvolvimento e destinos do racismo à brasileira: A BRANQUITUDE ESTÁ EM PAUTA”.

(Augusto Paim e Ignácio Paim Filho, OP 218/2021)

 

Sim, Augusto e Ignácio Paim (SBPdePA), a branquitude está em pauta! Atendendo à tão contundente convocatória de pai e filho, sinto-me obrigada a me posicionar e se é para falar de branquitude, comecemos por nos reconhecer brancos e privilegiados neste país fundado e construído na escravidão. Temos muita dificuldade de nos colocarmos neste lugar e tendemos a reagir de forma defensiva quando somos chamados de brancos.

 

Falo, antes de mais nada, do lugar da minha experiência: nasci nos anos 60 em uma família descendente de italianos e espanhóis, num bairro de classe média onde não havia negros. Cursei o primeiro grau (o ensino fundamental de hoje) na escola pública: na 1ª série, estudava à tarde, era uma escola municipal localizada no centro da cidade, havia alguns poucos alunos negros. A partir da 2ª série, no período da manhã, não havia mais negros. Muito menos no colegial particular (ensino médio). Mas esta não era uma questão: vivíamos cercados por uma narrativa de que todos eram iguais, cresci, então, “sem cor”. Iguais, mas cada um no seu lugar! Quando ingressei no curso de psicologia, em cerca de 200 alunos, havia dois colegas negros e nada se falava sobre isso, nada! Nunca problematizamos nem discutimos o racismo nem mesmo nas disciplinas de psicologia social. Eram os anos 80, vivíamos como se tudo isso fosse natural. Como poderia ser natural só haver brancos nesses espaços, em um país com 57% de pretos e pardos? Como poderia ser natural a cidade ser claramente dividida entre os “bem de vida” e os pobres, que moravam “lá longe”, além da linha do trem?

 

Uma vez psicóloga, fui me encaminhando para a psicanálise, e continuava a transitar em espaços quase exclusivamente brancos, onde os negros eram e são exceções. Nos anos 90, os estudos sobre o racismo e a branquitude começavam a surgir no Brasil e nos EUA.

 

Nosso país começou a vivenciar mudanças, ainda que tímidas, na primeira década deste século: a questão das cotas raciais foi se apresentando como fundamental, me lembro nitidamente de, nas conversas entre amigos, despontarem comentários deste naipe: “Agora nossos filhos não terão mais vez!”  “Essas cotas são um equívoco, elas que criam o racismo!” Eu me sentia confusa, mas a percepção de que era rodeada por profundas injustiças se apresentava com muita força. Eu via um país mudar, via os pretos assumirem seus cabelos enrolados, com turbantes afro e penteados que ostentavam uma estética antes negada e envergonhada. Via a população “ousando” frequentar os espaços dos centros das cidades e as universidades. Lia relatos emocionantes de pessoas beneficiadas pelas cotas. Mas eu também testemunhava uma classe média incomodada e com medo de perder privilégios.  Além das cotas, a PEC das domésticas, que com muito atraso reconhecia o trabalho doméstico como um trabalho que implicava em direitos trabalhistas, foi alvo de muita indignação da classe média (certa pessoa me disse: “Mas que injustiça, como vou manter minha empregada agora? ”)

 

Na turbulência política vivida nos últimos anos, a desigualdade social brasileira só se acentuou, parecia que parte da população tinha um interesse enorme de que alguns avanços retrocedessem. Em 2017, assisti a uma mesa redonda no Congresso Brasileiro de Psicanálise que se chamava “Nossas Raízes Escravocratas” e saí completamente emocionada pelas falas dos colegas Valton Miranda Leitão Jr (SPFort) e Wania Cidade (SBPRJ).

 

Depois, em 2019, em BH, vivi a experiência de um Congresso Brasileiro muito mais politizado, onde essa discussão tomou corpo e esteve presente em várias atividades científicas. Foi neste congresso de 2019 que o conceito da Branquitude me arrebatou, quando participava de uma mesa redonda e a colega Alice Lewcovicz da SPPA (em “A branquitude do analista dentro e fora de casa”, na  mesa redonda: Psicanálise e Comunidade – O analista fora de casa. XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, Belo Horizonte, MG, 2019) abordou essa questão. Cheguei tarde então à conversa, mas a partir daí, entrei em contato com os trabalhos de Lia Schucman, Maria Aparecida Bento, Iray Carone, Lélia Gonzales e vários outros intelectuais brilhantes da academia brasileira.

 

É um processo educativo: precisamos estudar e rever nossas visões de mundo, reconhecer que ocupamos lugares privilegiados e que nossos “pactos narcísicos inconscientes” (conceito da Maria Aparecida Bento) nos protegem do reconhecimento desses privilégios, nos oferecem a ilusão de pertencermos à raça que seria o modelo universal de humanidade.

 

Segundo Bento (2002), “há um silêncio sobre o lugar que o branco ocupa nas relações sociais brasileiras. O seu papel nas desigualdades sociais não é refletido, nem problematizado. O foco de discussão é o negro, o problema é exclusivamente dele. ” Bento identifica “um pacto, um acordo tácito entre os brancos de não se reconhecerem como parte absolutamente essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil” (Bento, M. A. – Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de doutorado apresentada ao IPUSP).

 

Chegou 2020, e com esse ano fatídico, chegaram a pandemia e a quarentena. Durante a quarentena, pude observar como nós, da classe média, desprezamos o trabalho manual e gostamos de ser servidos: organizamos nossas vidas de forma que não cabem em nossos dias a organização e limpeza de nossas casas, como se não nos coubesse a tarefa de lidar com a sujeira e as desordens. Ficamos desesperados quando tivemos que orientar nossas funcionárias domésticas a ficarem em casa (não estou nem me referindo a quem exigiu que elas continuassem trabalhando ou a quem deixou de pagá-las). Observei atentamente minhas reações e das amigas e conhecidas: no início exibíamos um orgulho como se estivéssemos fazendo algo extraordinário e, com o passar do tempo, fomos ficando exaustas, em certa altura, desistimos: passamos a buscá-las, a pagar Uber, a fazer qualquer negócio para que voltassem, ainda que com menos frequência. Observei também como meus analisandos falavam das empregadas e tive a chance de ver (nas sessões on-line) crianças e adolescentes lidando com suas funcionárias: várias vezes, como se elas não existissem, como se fossem invisíveis e como se sua presença não fizesse a menor diferença. Agimos como se nossas vidas valessem mais que a vida delas, como se elas cuidarem de nossos filhos fosse mais importante que cuidarem de seus próprios filhos.

 

Precisamos refletir sobre isso e reconhecer que o trabalho doméstico foi fundado, em nosso país, em nossas raízes escravocratas. Essas mulheres, que limpam nossas casas durante a semana e as próprias casas no final de semana, poderiam ser as mães das Ana Carolinas, dos João Vitor, João Pedro, Emilys e Rebecas assassinados nas periferias.

 

Ainda Cida Bento: “Assumir a sua ação nas desigualdades impostas pela discriminação racial não é culpabilizar o seguimento branco pelo passado e presente, mas desenvolver o senso de responsabilidade que o mesmo tem para com a situação do grupo negro, para que participe na promoção de ações responsáveis e políticas de ação afirmativa, para que os direitos e oportunidades prevaleçam independentes das diferenças étnico/raciais, entre outras. Diferenças essas que não devem instituir-se de formas hierárquicas e submetidas a recalques na sociedade..”

 

Sim, Augusto e Ignacio Paim, a branquitude está na pauta! Se nos pretendemos anti-racistas, isso passa necessariamente pelo reconhecimento em nós da branquitude. É urgente quebrarmos esses pactos narcísicos de silenciamento. É urgente repensarmos nossas visões de mundo, visões que passam por profundos processos de identificações e construção de percepções, ou seja, passam pelo inconsciente e pelos afetos, tendo então tudo a ver com nosso ofício de psicanalistas.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

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