MORTE E VIDA: NOVAS CONFIGURAÇÕES – XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise
Daniel Delouya
Morte e vida: novas configurações. ‘Morte e vida’ e não, como de costume, ‘Vida e morte’. O título se inspira no da obra regionalista e modernista de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina. Tal precedência da palavra morte sobre a de vida, indaga a psicanalise sobre a função que a morte teria na vida psíquica – isto é, a morte para os vivos – seja em prol da vida, seja em detrimento dela. Durante nossas jornadas que realizamos nesses dois anos junto às nossas federadas de norte ao sul de Brasil, de Fortaleza a Pelotas, e mesmo em Cartagena/Colômbia, por ocasião do Congresso FEPAL, tivemos debates importantes nos quais despontaram vários aspectos além de inúmeras descrições de configurações de morte e vida. Vou retomar aqui um, considerado talvez o mais clássico, embora seja para mim o mais vital: nossa relação com a morte. Sigo, como fio condutor, o eixo desenvolvido na segunda parte do texto de Freud de 1915, Considerações atuais sobre a guerra e a morte.
O desejo de morte que nutrimos por alguém que nos perturba, o voto para ‘que a morte o leve embora’, é um dos visitantes mais frequentes de nossa alma, afirma Freud: ‘a julgar pelos desejos inconscientes, somos um bando de assassinos’. Em semelhantes circunstancias o homem pré-histórico não hesitava em executar o seu inimigo. Qual seria a ligação entre esse desejo de morte do outro com a dificuldade que temos em conceber a própria morte, em se defrontar com ela, a não ser como observadores externos. No fundo, continua Freud, ninguém acredita na própria morte. A morte era certamente tão irreal e inimaginável para o homem primevo, quanto é ainda hoje para cada um de nós. Mas havia um caso em que essas duas atitudes opostas perante a morte (o desejo de morte do outro e a negação da própria morte) se chocavam e entravam em conflito: quando se tratava da morte dos mais queridos próximos. Nesses momentos captamos que poderemos morrer e nos revoltamos contra tal admissão, pois cada um desses amores constitui um pedaço do próprio amado eu. Mas em cada um desses amores há também um o quê de estrangeiro e odiado. Esses amados falecidos tinham sido também estranhos e inimigos, que haviam despertado no homem primitivo, e em nós, uma parcela de sentimentos hostis. É este ‘conflito de sentimentos’ – que surge por ocasião da morte de pessoas amadas, e ao mesmo tempo estranhas e odiadas – ‘que liberou a pesquisa humana’. Deste conflito, afirma Freud, nasceu em primeiro lugar a psicologia. O que seria essa psicologia? O homem não podia mais manter a morte a distância, já que a havia provado na dor pelos falecidos, mas não queria admiti-la, por não poder imaginar-se morto. Então incorreu em compromissos: admitiu a morte também para si, mas contestou o significado dela como aniquilamento da vida. A psicologia nasce do conflito desencadeando uma via regressiva de exumação da vida de outrora junto aos falecidos, dos elos de ligação e de identificações para com eles. Nesse trabalho, de luto, se constitui o universo da transferência, mobilizado pela fuga da morte, onde o anseio pela imortalidade se exaspera em suceder a consciência de culpa pela satisfação em sobreviver ao morto. O trabalho humano e o trabalho analítico são fruto da negativa, desta oposição à morte, que coloca em marcha a transferência, assemelhando-a à exumação da vida dos mortos: uma transferência que se dispõe, então, ao tempo da fala, ou seja, ao labor de sepultamento pelas palavras (Fedida). Cabe aqui, a título de nota, enxergar no luto um trabalho em que a separação, o sobreviver ao assassinato dos amados que compõem o nosso eu, implica o crescer, a assunção afetiva do trabalho da memória e da linguagem que a psicanalise moderna conferiu a novas descrições como as da posição depressiva, da preocupação materna primaria, da reverie, da cesura, e de toda a área relativa às trocas mãe- bebê. Por isso, qualquer relação humana, e das mais primitiva, tem como condição o reconhecimento das gerações, de sua dadiva em meio a luta do luto, na necessidade de suceder, e de seguir vivendo.
Pouco depois da morte de seu pai, em outubro de 1896, Freud começa a colecionar antiguidades, sobretudo as pequenas estatuas oriundas de civilizações do oriente médio (Egito, Chipre, Pompeia, Grécia, Roma). A arqueologia vai lhe servir de exemplo cultural para esse labor de exumação de vidas conservadas em cidades enterradas, figurando aqui o mundo psíquico, a memória. Como se as estatuas, companhias fieis em sua sala de analise, fossem seus guias de seu trabalho diário com a neurose. Numa carta a Fliess, nos dias de luto pelo seu pai, ele escreve; ‘meu pai teve uma vida longa, mas com sua morte todo o passado ressurge em mim de uma só vez!’
O conflito de sentimentos em volta da morte ‘liberou a pesquisa do humano, fazendo nascer a psicologia’ não só e apenas como uma descoberta do trabalho psíquico e a derivação do método analítico. A psicologia remonta esse conflito a sua constituição de origem, em volta do assassinato do pai primevo. O caminho desde então pelos totens e tabus, as religiões e até as leis de proibição de incesto e o ‘não mataras’ ergue o universo da cultura, nosso patrimônio humano. A cultura, a vida humana, constitui então esse campo intermediário decorrente do luto, onde o poder alucinatório das palavras propicia uma espécie de exumação inicial da história para seu posterior sepultamento. Precipitam-se, assim, as realizações humanas em suas variadas formas de trocas, e de produções carnais, simbólicas e sublimadas. Ao invés de repetir em ato alucinatório o feito humano, de assassinato, apoderando-se dos outros e dos bens do mundo, é o substrato alucinatório da palavra, em meio ao fazer compartilhado da cultura – movido pelos sonhos, mitos, narrativas -, que compensa esse viés narcísico primário. É justamente essa esperança, seguindo as coordenadas do poeta épico (Freud, Psicologia das massas e analise do eu, 1921), que nutre a confiança no trabalho da analise como amostra da vida em cultura.
Naquele momento de 1915, em meio a grande primeira guerra, colocou-se novamente a grande questão para Freud e que se abate sobre nós até hoje: depois de tantos esforços para erguer, conservar e cuidar da cultura, surge, na Europa, ápice da realização da cultura humana, uma desilusão, como se todas as conquistas do ser humano desde o assassinato do pai primevo até a constituição das grandes instituições reguladoras da vida humana – onde grupos humanos com distintas línguas e etnias podem vicejar lado ao lado em tantos modos de vida, além das produções comuns das artes, das ciências… -tudo isso acaba ficando por um fio, sujeito a destruição com a eclosão da guerra…É uma desilusão. Quinze anos depois, Mal-estar na Cultura não deixa mais dúvidas, e logo, em poucos anos, na segunda guerra, assiste-se, novamente, a uma destruição desenfreada, e justamente no seio mais candente da cultura. Lacan de 1938 (‘Complexos familiares’) nos alerta do declínio da lei do pai no bojo do projeto mor da civilização – a promessa da felicidade que, aliais, é fio condutor do livro Mal-estar– onde propostas sociais da felicidade, de reformas e de revoluções, tomam o poder na Europa: nazismo, fascismo e comunismo. Cada um com eixo marcante, não de sustentação do conflito face a morte, mas de uma solução final, desembocando na volta do reino do pai primeveo, e sua história de destrutividade. Entretanto, não se abre mão da Ilusão da felicidade. Essa ressurge com força, como promessa do processo civilizatório, mesmo face às evidentes desilusões trazidas pelas guerras e suas agressões.
E hoje, novamente, as estatísticas mostram que estamos vivendo no melhor dos mundos, na época mais abençoada da história. E não se pode contestar esse fato e essa realidade. Cada um de nós pode encontrar os grafos de forma tão viva na nossa droga inebriante de cada dia, nos posts de Facebook, onde as curvas da longevidade e da riqueza no mundo não param de crescer desde 1948, ou seja, após a II guerra. Health and Welth com índices inacreditáveis: o que se quer mais?! ‘Está tudo certo, otimo!’ E, de fato!!! Mas as desilusões com a cultura não tardam a aparecer a cada momento e em todas as manifestações da vida privada e pública. A busca pela segurança, domínio e felicidade não conseguem mais disfarçar o engendramento dos pesadelos atuais da vida em cultura.
Voltamos a nossa questão: porque a psicologia fracassou? Porque a morte e o conflito de sentimentos não estão tendo êxito? Por que dessa reversão da lei do pai, após o seu assassinato? Essa é toda a parte da segunda tópica freudiana, da pulsão de morte, onde a pressão cultural sobre o arranjo das pulsões demonstra seus limites e exige acomodações que se manifestam na vida em cultura. Não apenas e não só o masoquismo moral, que fazem proliferar correntes religiosas de salvação, fanatismo, drogadições entre outras pechas doentios e tantas outras fetichistas da contemporaneidade, mas assiste-se também a outras vias criativas de gozo em tudo que se refere às transformações na assunção de novas identidades sexuais, novas modalidades de vida familiar, entre outras.
O cerne destas evoluções já se encontra vislumbrado no texto de 1915. Por não poder admitir o significado do aniquilamento da vida, o homem primitivo, junto ao cadáver de alguém que amara, inventou espíritos…. A consciência de culpa fez com que tais espíritos recém-criados tornassem maus demônios. As modificações trazidas pela morte levaram o homem primitivo a decompor o indivíduo em corpo e alma -originalmente várias almas. De tal maneira o seu curso de pensamentos seguia paralelo ao processo de decomposição que a morte introduz no corpo”. Diante da morte e sua insuportável assunção continuamos velando pela imortalidade, inventando espíritos, maus e bons, igualmente idealizados, fetiches e criações, onde a decomposição, melancolia canibal da mente, está sempre à espreita em face a luta pela vida e também em detrimento dela.
(Apresentado na abertura do XXVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, Fortaleza, 1/1/2017)
Daniel Delouya
Presidente da Febrapsi – gestão 2015-2017