Curso de Graduação em psicanálise: é possível?
Carlos Cesar Marques Frausino
Membro da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb). Diretor do Conselho Profissional da Febrapsi, Mestre pela Unicamp. Editor da Revista Alter, da SPBsb (2013-2017)
Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia
Feitio de Oração – Noel Rosa
Tá legal, eu aceito o argumento
Mas não me altere o samba tanto assim
Olha que a rapaziada está sentindo a falta
De um cavaco, de um pandeiro ou de um tamborim
Sem preconceito ou mania de passado
Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar
Faça como um velho marinheiro
Que durante o nevoeiro
Leva o barco devagar
Argumento – Paulinho da Viola
Pode isso, Arnaldo?
Bordão utilizado por um conhecido comentarista de futebol.
Recentemente, além da pandemia e da crise política que estamos inseridos, soubemos de mais um fato que nos assombrou: a oferta de um curso de graduação, bacharelado em psicanálise, no formato Ensino à Distância, de 4 anos, por um Centro Universitário ligado a um grande grupo econômico educacional, com diploma e autorização para clinicar.
O eterno retorno do recalcado! A formação dos psicanalistas não tem atalhos. É árdua e pautada por uma ética singular, seriedade e um longo e árduo trabalho de conhecimento do inconsciente (análise pessoal, supervisão e estudos) dos profissionais que desejam se tornar psicanalistas.
Sabemos que o resultado da supremacia dos interesses comerciais em relação ao conhecimento psicanalítico desenvolvido ao longo de mais de um século e aos critérios de formação e transmissão da psicanálise de sólidas instituições psicanalíticas é conhecido: pessoas bem-intencionadas e/ou que buscam soluções para suas dores na alma e na mente são enganadas por escolas e profissionais pautados pela lógica mercantil da busca pelo lucro incessante.
Diante da notícia do curso, sobram indagações e faltam respostas: O Ministério da Educação – MEC autorizou? O curso está credenciado? Mas, a psicanálise não é regulamentada, é um ofício, mesmo assim é possível um curso de graduação em psicanálise? Fato que nos remete à antiga discussão da regulamentação e da regulação da profissão/ofício de psicanalista. Nessa breve nota, informo alguns detalhes do processo de criação desse curso.
Oxalá, o cancioneiro brasileiro possa inspirar a nossa Federação e a comunidade dos psicanalistas a defender a potência do legado freudiano de interesses mercantis. Ademais, que a lembrança do bordão futebolístico evite posturas semelhantes às de torcidas organizadas de futebol e suas posições apaixonadas desprovidas de temporalidades, estratégias, perspectivas etc etc ao longo dos próximos meses, na definição de estratégias de combate a esse acinte.
Sem liberdade poética, quase que semanalmente, recebemos na Febrapsi – Federação Brasileira de Psicanálise, informações de tais cursos, “sindicatos”, “conselhos” etc etc. Até há pouco tempo, antes da pandemia, tínhamos notícias frequentes de cursos de formação clínica, sindicatos, conselhos e de profissionais, normalmente, sob a égide de credos religiosos tais como: psicanálise cristã, psicanálise xamânica, a formação da Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB) etc etc.
No entanto, o que temos observado, recentemente, é que a oferta de tais cursos saíram do estrito campo religioso e, agora, estão pautados por uma lógica mercantil, com assessoria de psicanalistas e com alto grau de profissionalismo, promovidas por grandes grupos econômicos, como é o caso do curso de graduação em psicanálise recém-lançado pelo Centro Universitário Internacional, Uninter, do Paraná. Um grande grupo econômico associado à educação que pertence a um empresário e político tradicional com fortes vínculos ao atual governo e a políticos daquele estado.
Para tais segmentos, o exercício e a formação em psicanálise tornaram-se uma mercadoria.
A psicanálise é laica, incompatível com uma Weltanschauung religiosa e não é uma mercadoria!!
O Uninter, segundo seu sítio eletrônico, está presente em todos os estados da federação, com aproximadamente 400 cursos de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado e extensão. Já formou algo em torno de 500 mil alunos. Há informações que a demanda para o curso em psicanálise é de aproximadamente 2.000 alunos com início previsto para meados de fevereiro próximo.
Tais grupos têm profissionais especialistas no emaranhado rizomático das leis, portarias e normas da burocracia de Brasilia. Assim, segundo a legislação vigente é necessária a autorização prévia do Ministério da Educação para a oferta de cursos de graduação. No entanto, as universidades e os centros universitários independem de autorização para o funcionamento de curso superior, devem apenas informar o Ministério da Educação os cursos criados por atos próprios para fins de supervisão, avaliação e posterior reconhecimento.
Com essa informação, é possível esclarecer alguns aspectos. O curso de bacharelado em psicanálise do Uninter está dentro da legalidade e o MEC autorizou, tacitamente, segundo as portarias e normas vigentes, a criação do curso. O Uninter necessita, apenas e somente, informar o MEC da criação do curso.
No entanto, a oferta de cursos de graduação em direito, medicina, odontologia, psicologia e enfermagem, inclusive em universidades e centros universitários, depende de autorização do Ministério da Educação após prévia manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Nacional de Saúde.
O necessário pedido de reconhecimento do curso – para a validação do diploma do aluno – poderá ser solicitado pela Instituição de Ensino Superior (IES) no período compreendido entre cinquenta por cento do prazo previsto para integralização de sua carga horária e setenta e cinco por cento desse prazo. No caso do curso da Uninter, caso inicie em 2022, o pedido de credenciamento deverá ser feito após 2024. Vale registrar esse prazo.
O reconhecimento de cursos de graduação em direito, medicina, odontologia, psicologia e enfermagem será submetido à manifestação, em caráter opinativo, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no caso de curso de Direito, e do Conselho Nacional de Saúde, nos cursos de Medicina, Odontologia, Psicologia e Enfermagem.
A Febrapsi está atenta a tais movimentos.
A Federação Brasileira de Psicanálise é uma instituição fundadora e componente do Movimento Articulação – um delicado arranjo institucional que une cerca de 24 entidades psicanalíticas de vários matizes teóricos e clínicos – que tem como objetivo obstruir projetos de lei no Congresso Nacional que visam à regulamentação da psicanálise como profissão e informar a sociedade da natureza e a especificidade do nosso ofício. Nesse sentido, o Movimento teceu manifesto contrário a criação do curso, subscrito pelas instituições que compõem o movimento e com o apoio de mais de cem entidades psicanalíticas que está circulando pelas redes sociais e estimulou a publicação de um conjunto de excelentes artigos, lives e discussões.
Em direção de contrarrestar os ataques ao nosso ofício, a Febrapsi também desenvolve a campanha #PsicanaliseÉ, levado à frente pela Diretora de Divulgação e Comunicação da Febrapsi, Marina Bilenky, que por meio de posts e vídeos gravados por colegas, informa, nas mídias sociais, a psicanálise que praticamos no campo da IPA/Febrapsi. O nosso modo de fazer e pensar a clínica, a teoria e o método psicanalítico.
Convido todos a divulgar, junto às federadas, o material que se encontra no perfil e no sítio eletrônico na Febrapsi e nas mídias sociais (Facebook e Instagram).
A Febrapsi está trabalhando para divulgar a psicanálise por meio da divulgação dos princípios da psicanálise, da seriedade e da ética da formação e no exercício da psicanálise, que praticamos nas 18 federadas que compõem a Federação e fará o possível e o necessário para defender a tradição psicanalítica junto ao governo federal e ao Congresso Nacional. Vamos continuar a fazer gestões junto às instâncias do governo e do Estado para que a voz da Febrapsi
No esteio das viórias da ABP/Febrapsi contrárias às ações da SPOB no início dos anos 2000, vamos seguir na defesa da especificidade do legado freudiano.