Carta-convite
A criança e os pais
Desde os primórdios da psicanálise Freud ressaltou o papel estrutural da infância nos nossos processos mentais. O caso do Pequeno Hans (1909/1976) evolui a partir da observação direta na criança das teorias a respeito da sexualidade infantil apresentadas em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1990). Por conseguinte, lança inúmeras trilhas, ideias germinativas, que logo são acolhidas e expandidas por colegas e seguidores de Freud. Desenvolveu‐se a interpretação simbólica do brincar, do desenho, do sonho e dos sintomas infantis. Constatou‐se que a criança está intricada na relação específica que mantém com os pais, sendo estes também compreendidos a partir de sua constituição psíquica específica. O mais relevante, contudo, foi a postura de tomar a criança em sua totalidade, com sua fala, seu comportamento, suas brincadeiras, e com uma personalidade a ser levada a sério. Verifica‐se o fascínio ao acompanhar os longos diálogos de Hans com o pai, e a rápida conversa que teve com o próprio Freud. Ao final, muito além de sustentar suas teorias a respeito do desenvolvimento da libido na infância, Freud apresentou a possibilidade de estender a psicanálise para esse novo campo. Foi logo seguido por colegas que ousaram acompanhar seus passos ou mesmo inovar os caminhos ao divergir dele.
Duas mulheres, Anna Freud e Melanie Klein, dedicaram‐se com afinco a esse novo campo e foram capazes de pensar teoricamente a nova prática clínica, não somente produzindo um grande desenvolvimento no trabalho psicanalítico com crianças, mas fertilizando a teoria como um todo. Klein ampliou de maneira significativa o campo com contribuições que podem ser entendidas como estruturantes da própria psicanálise. Em decorrência de seus trabalhos, desenvolveu‐se o atendimento de crianças pequenas e de adolescentes, com a aparição de nomes expressivos, que se tornaram pedras angulares do arcabouço psicanalítico, como Winnicott, Bion, Tustin, Mannoni, Dolto, Bick e Aberastury, só para citar alguns. O que era a princípio inferido no atendimento de adultos passou a ser escrutinado diretamente na relação que as crianças e os jovens estabeleciam com os analistas, com impacto também no atendimento dos adultos e na produção teórica. Tornou‐se fundamental o foco não só nas pulsões, mas também na intersubjetividade, na qual não existe um bebê sem que se considere sua mãe (ou quem faça as funções normalmente exercidas por ela) e o ambiente em que se encontra, o que levou ao reconhecimento da necessidade de um maior engajamento dos pais no atendimento dos filhos crianças e adolescentes. O trabalho com a parentalidade surge como um desdobramento desse desenvolvimento.
São inúmeras as novas questões com as quais o psicanalista de crianças se depara nos dias de hoje. Podemos falar de questões mais técnicas, como a manutenção do setting, o questionamento de qual é o setting adequado e quando incluir os pais nele, a maneira de lidar com os pais em uma análise de criança, a análise online etc. Mas é igualmente preciso pensar na demanda de interlocução que existe com a escola, com pediatras, fonoaudiólogos e outros profissionais – em determinados atendimentos, isso se faz crucial. Como o psicanalista trabalha com a criança em um contexto de equipe multidisciplinar de atendimento?
Além dos quesitos que costumam surgir nessas análises – como os relacionados a adoção, abuso sexual, incesto, dificuldades que os pais possam manifestar quando os filhos se desenvolvem, perturbações familiares evidenciadas a partir do atendimento das crianças que podem levar a interrupções do atendimento por questões dos adultos, no momento em que a criança deixa de funcionar como depositária de identificações projetivas do grupo familiar, das brigas entre os genitores etc. –, outras questões têm sido muito debatidas, como identidade de gênero, homoparentalidade, transexualidade dos filhos e dos pais, e casais trans que geram filhos (o pai era originalmente do sexo feminino ou vice‐versa, ambos eram a princípio do sexo oposto ao que passaram a ter socialmente depois). Como essas questões têm se manifestado na clínica e como fazer frente à demanda de respostas e posicionamentos sem perder o vértice psicanalítico? As famílias têm se transformado. Os agrupamentos que se incumbem de criar as crianças são os mais variados. Como se está lidando com isso? O que tem sido observado e pensado a respeito? Há ainda, por um lado, uma intensificação na mediação da tecnologia médica na concepção com reprodução assistida, na gravidez (barrigas de aluguel, manipulação genética, escolha dos embriões fecundados, gestação de embriões de pais já falecidos) e no parto, e por outro, uma demanda de naturalização, com partos caseiros, amamentação estendida, cama compartilhada, e assim por diante. Como os analistas de crianças respondem a esses fatos? É possível não se posicionar ideologicamente e manter o vértice psicanalítico com base na experiência que as crianças e as famílias apresentam?
Todo um universo novo, antes desconhecido ou não percebido, emerge. Como as/os analistas de crianças e de adultos estão lidando com essa nova realidade? Há também a clínica de transtornos autísticos e seus desenvolvimentos.
Apresentam‐se, dessa forma, problemáticas relativas à ética e ao manejo em um terreno pouco mapeado.
Certamente estamos deixando de lado questões que os colegas envolvidos podem apresentar nos trabalhos que venham a submeter à RBP.
Gostaríamos de convidá‐los a encaminhar artigos que abordem sua experiência no atendimento de crianças e as peculiaridades no que concerne à participação dos pais e sua importância. Esperamos que esse tema fomente inúmeras contribuições. Destacamos que é relevante, na apresentação de situações clínicas, tomar muito cuidado para manter o sigilo profissional. Dados que possam levar à identificação dos pacientes pelos leitores devem ser suficientemente distorcidos e criptografados para inviabilizar o reconhecimento.
Aguardamos o envio dos trabalhos até o dia 17 de março de 2023. As orientações para a submissão de artigos encontram‐se em nossa página eletrônica: www.rbp.org.br.
Referências
Freud, S. (1976). Análise de uma fobia de um menino de cinco anos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 10, pp. 11‐154). Imago. (Trabalho original publicado em 1909) Freud, S. (1990). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de S. Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 7, pp. 118‐228). Imago. (Trabalho original publicado em 1905)
Claudio Castelo Filho
Editor
Elsa Vera Kunze Post Susemihl
Editora associada
Com a colaboração de Sonia Maria Camargo Marchini
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