PERDÃO

REFLEXÕES SOBRE O FENÔMENO DO PERDÃO

Agradecimentos.

Agradeço a todos os colegas que direta ou indiretamente participaram da construção desse texto: Anelise Rotta Mashinsky; Deise Cabral; Ednéia Cerquiari; Gleda Brandão de Araujo; Joselane Campagna; Leila Tannous Guimarães; Lenita N. Osorio Araujo; Thalíta Gabínio e Sousa e Paulo Márcio Bacha.

REFLEXÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O FENÔMENO DO PERDÃO

“não estou triste por morrer, mas por não poder me vingar. (prisioneiro de Auschwitz – Birkenau/   Holocausto).

O cenário mundial tem nos apresentado um campo de polêmicas infindáveis, quer sejam de ordem político-ideológica, social, científica ou filosófica. Parece-nos, que todos esses campos têm estado a serviço de ideologias questionáveis, quer pendam a um polo ou a outro. Assolados por uma pandemia que foi anunciada historicamente, vimos nossos políticos completamente divididos em suas concepções científicas e econômicas, somados à uma mídia igualmente dividida ideologicamente, sem contar uma guerra que foi deflagrada na sequência temporal no leste europeu. O cidadão comum, invadido por uma avalanche de informações desencontradas e manipuladas, caminha cegamente e busca alternativas para seguir em frente em seu cotidiano e ainda, busca encontrar/ construir suas Visões de Mundo ( Weltanschauung).

Em um cenário tão dividido, famílias  e outras instituições, também divididas, e ainda, o próprio sujeito dividido em sua intimidade, como bem o sabemos que de fato somos, entendemos que cabe àqueles que se propõem a pensar, tentar fazer suas leituras da maneira mais ampla possível, se é que somos capazes.

Nesse ambiente, envoltos pela turbulência que nos ronda, a Sociedade Psicanalítica de Mato Grosso do Sul, se propôs a investigar o tema sobre o fenômeno do Perdão. Talvez, buscássemos o “bom” como uma contraparte.

O fenômeno sobre o perdão em princípio, nos seduzia por sua beleza quase poética e porque não dizer, “romântica”. Assim, demos nossa largada. Dividimos nosso grupo e partimos para a investigação sobre o conceito de perdão em várias linhas: mitologia, religião, filosofia, sociologia e psicanálise. Nosso mote fundamental esteve sempre voltado para as operações mentais que poderiam redundar na capacidade de perdoar, ou não. Ainda que a filosofia muito tenha contribuído em nossas leituras, bem como as concepções mítico religiosas, algo não fluía pelas mais diferentes razões, algumas quem sabe, jamais apreendidas conscientemente. Algo também nos faz  pensar em “cansaço” e porque não dizer, quase que um sentimento de  desistência em investigar um sentimento que no momento, não éramos capazes de sentir.

Esse quadro acima descrito, começou a se modificar, a partir de um diálogo informal com um colega, através do WhatsAap. Em uma parte do grupo, parece que havia uma tendência ou um apreço à capacidade de perdoar – foi intuído posteriormente que tal tendência se devia talvez, muito mais aos aspectos de um superego religioso, “encarnado”, ainda que inconsciente, do que necessariamente a uma reflexão mais ampla que considerasse os aspectos pulsionais e dinâmicos de camadas mais profundas da mente.

Enquanto uma posição quase tendenciosa, havia uma propensão a defender a capacidade de perdoar como uma possível saída para os traumas e injustiças sofridas por uma vitima, ainda que não soubéssemos como se daria essa economia e dinâmica mental; outra parte do grupo, por outro lado, tendia a defender o sentimento de vingança como uma possibilidade de sobrevivência. Creio que cabe nessa breve apresentação, a nossa troca de mensagens.  Nosso amigo começa assim:

A propósito da questão do perdão/ desejo de vingança ser ou não ser ligado à pulsão de vida envio esse texto”:

O relato mais impressionante do Holocausto – … ‘não estou triste por morrer, mas por não poder me vingar.’

Em 1944, um prisioneiro escreveu uma série de textos e os enterrou em Auschwitz; décadas depois, papéis foram achados e, hoje restaurados quase na íntegra, compõem um dos relatos mais importantes do

Holocausto – Auschwitz – Birkenau – nazismo ( Dagmar Breitenbach Deutsche Welle)

Todos os dias, Marcel Nadjari e outros presos de uma unidade de trabalho conhecida como Sonderkommando ( comando especial), no campo de extermínio de Auschwitz – Birkenau, enfrentavam o pior dos horrores.

“Todos aqui sofremos coisas que a mente humana não pode imaginar”, afirma Nadjari.

O relato está num texto que ele escreveu secretamente no final de 1944, colocou dentro de uma garrafa térmica envolta numa bolsa de couro e enterrou perto do crematório 3 do campo, que seria libertado no inicio de 1945.

O texto, tido como um dos mais impressionantes documentos do Holocausto, foi descoberto por um estudante nos anos 1980 e, após anos de restauração, agora pode ser lido quase na íntegra.

“Debaixo de um jardim, há um porão com dois recintos infinitamente grandes: um deles é usado para tirar as roupas. O outro é uma câmara da morte”, relata Nadjari.

“As pessoas entram nuas e, quando o espaço está cheio com cerca de três mil pessoas, ele é fechado, e todos sãs asfixiados com gás.”

O prisioneiro grego descreve, entre outras coisas, como os detentos do campo eram enfiados “como sardinhas” na câmara, enquanto os alemães usavam chicotes para apertá-los ainda mais dentro do recinto antes de trancar as portas e abrir os dutos de gás.

“Após meia hora, abríamos as portas e começávamos o nosso trabalho”, conta Nadjari. Sua ocupação: levar os cadáveres aos fornos de incineração, onde “ um ser humano acaba sendo reduzido a cerca de 640 gramas de cinzas”.

O Sonderkommando era um grupo de trabalho em Auschwitz composto por prisioneiros judeus do campo de extermínio. Os detentos eram obrigados a preparar os assassinatos em massa de outros prisioneiros, saquear seus pertences após a gaseificação e transportar os corpos para os fornos. A história é bem contada, por exemplo, no filme húngaro O Filho de Saul (2015), vencedor do Oscar de melhor longa estrangeiro.

Os escritos de Nadjari, de raridade histórica, estão agora quase inteiramente legíveis, após terem sido descobertos em condições precárias de conservação. De acordo com o historiador russo Pavel Polian, a mensagem de Nadjari, é um de nove documentos distintos encontrados em Auschwitz. O conjunto de textos escritos por cinco membros do chamado Sonderkommando, “são os documentos mais centrais do Holocausto”, afirma o pesquisador. Três décadas enterrados, Polian pesquisou o texto por dez anos e publicou suas descobertas no livro “Scrolls from the ashes” (Pergaminhos das cinzas, em tradução livre).

Mensagens enterradas como as de Nadjari foram encontradas exclusivamente em Auschwitz, diz o historiador, a maioria em fevereiro ou março de 1945, logo depois que o campo foi libertado.

A mensagem de Nadjari foi a última a ser encontrada, e Polian acredita ser altamente improvável que haja outras mensagens de membros dos Sonderkommando ainda enterradas..

Cerca de cem dos quase 2 mil prisioneiros de Auschwitz encarregados de se livrar dos milhares de cadáveres sobreviveram aos horrores do campo de extermínio. Dos cinco que escreveram e enterraram suas mensagens, Nadjari foi o único sobrevivente.

Em 1980, um estudante que fazia escavações na floresta próxima às ruínas do Crematório 3 de Auschwitz – Birkenau, desenterrou as notas enroladas dentro da garrafa térmica. Ao contrário das mensagens dos outros prisioneiros, apenas entre 10% e 15% do texto de Nadjari estavam legíveis.

Os papéis, escritos em iídiche, ficaram enterrados em solo úmido por 35 anos no momento da descoberta. Depois, foram encaminhados ao Museu Estatal de Auschwitz- Birkenau, instalado na Polônia.

Em 2013, um jovem russo especialista em T.I ( Tecnologia de Informação), passou um ano trabalhando no manuscrito borrado, voltando a tornar os contornos das letras visíveis com a ajuda de análise de imagens multiespectrais (usando imagens com diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas).“Atualmente conseguimos ler de 80 a 90%, diz Polian, que iniciou o projeto de avaliação do manuscrito. Segundo o historiador, o texto está traduzido para o inglês e para o grego – e as traduções deverão ser publicadas em novembro. Retorno à Grécia. Nascido em 1917, Marcel Nadjari era um comerciante grego de Tessalônica. Foi deportado para Auschwitz em abril de 1944 e colocado para trabalhar no Sonderkommando.“ Se você ler sobre as coisas que fizemos, vai dizer: ‘Como alguém pôde fazer isso, queimar seus companheiros judeus?”, escreveu Nadjari. “Foi o que eu também disse no início, e no que pensei várias vezes”. Após a guerra, Nadjari retornou à Grécia. Em 1951, ele, sua esposa e seu filho emigraram para os Estados Unidos onde trabalhou como alfaiate. Nadjari morreu em Nova York em 1971, aos 54 anos de idade. Apesar de Nadjari, no período em que morou na Grécia, ter escrito as suas memórias, parece que ele nunca contou a ninguém sobre o manuscrito que enterrou em Auschwitz. Nos escritos, mais de uma vez, Nadjari escreveu que ficava tão devastado que pensava em se juntar aos prisioneiros nas câmaras de gás – mas a perspectiva de vingança sempre o impedia de fazê-lo. Ele é o único dos cinco autores do Sondercommando que escreveu abertamente sobre a vingança.  Segundo o historiador russo Polian, é isso que distingue as anotações de Nadjari dos outros. “Não estou triste por morrer, escreve Nadjari, mas fico triste por não poder me vingar como eu gostaria”.

(Dagmar Breitenbach Deutsche Welle, Revista Carta Capital, on-line, consulta em 06/01/2022).

Meu colega acrescenta: Nem sempre o perdão viabiliza a vida.

Essa nossa correspondência ocorreu no dia 06 de janeiro de 2022.

Impactada após a leitura, respondo : “Sim, a pulsão de morte também constrói”.

Em seguida acrescento, buscando ainda defender a minha antiga posição: “Porém, podemos pensar em algumas situações em que a incapacidade para perdoar nos mantêm  presos mentalmente, sem aberturas para novas experiências”.

Meu amigo responde: “O perdão pode criar a perda da razão de viver no sentido dos existencialistas e de Camus no “ Homem Revoltado”.

Para Albert Camus, acrescento aqui, a revolta é o engajamento consigo mesmo:

devemos viver a realidade como ela é, descrevendo o que sentimos, criando novos projetos, porem focando nossa atenção no presente, sem nos perdermos em esperanças, em devaneios.” ( Camus, A.  1996).

Exasperada pelas fortes citações e defesas de meu amigo, escrevo: “ Aqui, me recordo do  PENSAMENTO COMPLEXO, de Edgar Morin.

Ele me responde:   CONCORDO.

Nossa troca de mensagens se interrompe aí.

Em seguida, comentaremos sobre o “Pensamento Complexo”. De qualquer maneira, esse diálogo demonstra que existem defesas para as mais diferentes ideias de toda a ordem, seja para uma ou outra posição. Foi ali que Morin surgiu no campo do diálogo.

Essa conversa tinha então duas tendências: apologia ao perdão ou à vingança, como representações ou possibilidades para discussão.

Comecemos a pensar com Freud, com a dualidade pulsional, com Melanie Klein, sobre a força da destrutividade nas regressões patológicas ou não, Herbert Hosenfeld com a fusão “normal” e patológica.  Tudo isso entrelaçado com Edgar Morin. Qual seria o ponto de intersecção?

Cabe ressaltar que após a primeira escrita deste texto, ao discutirmos em grupo, surgiu também a importância do mundo externo, “o meio ambiente”, para a construção do mundo interno e para tal reflexão, buscamos os aportes de Donald Winnicott.

Foram esses os pensadores que desfilaram nesse espaço imaginário em nosso percurso reflexivo.  Assim, pretendemos pensar o fenômeno do Perdão através dessa linha acima comentada.

O tema sobre o Perdão, aparece na obra freudiana desde o Mito de Édipo (Sóflocles), como uma preocupação de auto perdão, com suas consequentes implicações e seus posteriores desdobramentos no desenvolvimento mental do ser humano. Isso significa que ainda que o conceito traga na história um percurso mítico religioso, o mesmo também aponta para a possibilidade do ápice do desenvolvimento emocional, ou não, porem pouco enfatizado pelos pensadores e teóricos de nossa disciplina. Pouco a Psicanálise se debruçou sobre o conceito do Perdão e suas repercussões no funcionamento mental. Vale dizer que o seu oposto, a vingança e a punição, aparecem no conceito de Superego, como  uma aquisição mais tardia, segundo o modelo de identificação paterno filial; já o perdão, também pode ser pensado através do modelo kleiniano, quando este modelo teórico se refere à capacidade de edificação do sentimento de culpa e reparação que ocorre na chamada posição depressiva. A metapsicologia da Culpa é abundantemente desenvolvida nos textos da pesquisa psicanalítica, diz Caon, J. L (1998), já o mesmo não ocorre com o conceito e a metapsicologia sobre o perdão.

Na epígrafe acima, vimos que diante de uma atrocidade impingida a uma vitima, o que lhe deu força para se manter vivo, foi o desejo de vingança.

Embora a troca de mensagens entre dois colegas seja relativamente curta, ela enseja duas posições pendulares, dois opostos e foi isso que suscitou o Pensamento Complexo de Edgar Morin, como uma tentativa de integração.

Lembramos aqui que em Psicanálise, muitas teorias e concepções as mais variadas, podem ser utilizadas para a compreensão de um determinado fenômeno mental, dada a multiplicidade de postulações de nosso campo de conhecimento. Também na moderna Psicologia experimental, conforme comenta Cabral (2021), o Perdão foi ‘elevado’ ou ‘rebaixado’ à condição de instinto – o que para nós, psicanalistas, seria muito difícil a compreensão dessa concepção, evidentemente. Os caminhos para pensar são infinitos e é nossa intenção pensarmos à partir do percurso ocorrido pós diálogo. Um percurso que nos pareceu interessante o suficiente para esmiúça-lo.

 Edgar Morin, em seu Prefácio ( Introdução ao Pensamento Complexo -2015), comenta que […o conhecimento científico foi durante muito tempo e com frequência ainda continua sendo concebido como tendo como missão dissipar a aparente complexidade dos fenômenos a fim de revelar a ordem simples a que eles obedecem]. Mas o resultado conforme comenta, é que esta tentativa de simplificação de conhecimento, mais mutila do que exprime as realidades. Produzem mais cegueiras do que elucidação. ….[A palavra complexidade é uma palavra-problema e não uma palavra-solução.

Parece ocorrer na visão de Morin (2015), uma tensão permanente entre aspiração a um saber não fragmentado, não redutor e o reconhecimento do inacabado e da incompletude de qualquer conhecimento como é o caso sobre o fenômeno do Perdão para a Psicanálise.

Para Morin, O Pensamento Complexo é:

um tecido de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. A Complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. ( MORIN, 2015. p 13)

A dificuldade do Pensamento Complexo é que ele deve enfrentar  as incertezas e as contradições. Esse percurso precisa estar aberto nas teorias, tal qual fez Freud, diz Morin, “em que o Ego é um sistema aberto ao mesmo tempo sobre o Id e o Superego, só podendo se constituir a partir de um e do outro” p. 23. (Freud 1923, apud Morin 2015).

Morin, parece tentar integrar as oposições como parte do sistema. Longe de priorizar o simples, considera o acesso ao conhecimento como um caminho caótico que necessita ser considerado. Isso nos leva às ideias da teoria pulsional e seu vasto inter jogo como um caminho para a complexidade do mundo mental. Retornaremos a Morin mais tarde.

Voltando agora para a nossa disciplina, faço lembrar que Freud em 1920 introduziu uma nova dualidade pulsional e desta feita, com o conceito de pulsão de morte. A concepção da pulsão de morte propiciou uma maior compreensão dos fenômenos agressivos e foi de extrema importância para a Clínica.

A pulsão de morte age de maneira silenciosa, diz ele. A mesma seria projetada para fora pela ação da pulsão de vida e se expressaria de maneira destrutiva ao se dirigir para os objetos externos.

Somos conhecedores que a pulsão de morte e de vida são mescladas ou fusionadas em proporções variadas. Para Freud, quase nunca essas pulsões se manifestariam de maneira pura.  

Em 1915 em , Os Instintos e suas Vicissitudes, Freud acentua a importância da agressão primária:

O ódio enquanto relação de objeto, é mais velho do que o amor. Deriva do repúdio primordial do Ego narcísico ao mundo externo, com seu fluxo de estímulos. ( FREUD, S. Os Instintos e suas Vicissitudes, 1915,p. 161).

Herbert Rosenfeld em 1971 ( in Melanie Klein Hoje, 1991,)  comenta que entre os diferentes analistas que aceitaram a postulação da pulsão de morte e sua interação com a pulsão de vida, Melanie Klein merece uma atenção especial já que calcou a sua teoria tanto teórica quanto clinicamente nesta hipótese. Essa autora descreveu os primeiros mecanismos infantis de cisão de objetos e do Ego que permitem ao Ego infantil manter o amor e ódio separados. Em 1958, diz Rosenfeld, Melanie Klein observou em seu trabalho analítico com crianças pequenas uma luta enorme entre um desejo de destruir seus objetos e concomitantemente, um desejo de preservá-los. Ela acreditava que a descoberta de Freud das pulsões de vida e de morte representavam um grande avanço para a compreensão dessa luta. ( Rosenfeld, H. 1971). Continuando, Klein acreditava que a ansiedade, adviria da ação da pulsão de morte dentro do organismo. Para se defender dessa ansiedade, o Ego incipiente usa de dois mecanismos: parte da pulsão de morte é projetada no objeto externo que assim, transforma-se em um objeto perseguidor e a parte que fica retida no Ego, dirige a agressão contra esse perseguidor.

A pulsão de vida também vai ser projetada para dentro dos objetos externos, que por sua vez serão sentidos como amorosos ou idealizados. Uma das características do desenvolvimento inicial é cindir o objeto idealizado, do objeto mau perseguidor e mantê-los separados , o que significaria que as pulsões de vida e de morte seriam mantidas em um estado de desfusão ou desmescla.

Para Klein ainda, paralelamente à cisão dos objetos, ocorre a separação das partes boas e más do self . Esses processos de cisão do Self, também mantêm as pulsões em um estado de desfusão. Com os processos projetivos, também tem o inicio de outro processo primário chamado de introjeção e conforme aponta ainda Rosenfeld , este agiria à serviço da pulsão de vida. Esta introjeção, combate a pulsão de morte porque propicia ao Ego incorporar coisas que dão vida ( primeiramente através da alimentação) e assim, restringir a pulsão de morte, ou no mínimo, arrefece-la . Esse seria o início da fusão das pulsões de vida e de morte. Em um processo de desenvolvimento minimamente bem sucedido, a desfusão das pulsões tem que gradualmente dar lugar a fusão.

Para Hartman et al 1949, ( apud Rosenfeld 1991), a fusão e desfusão pulsional estariam atreladas à neutralização da energia sexual e agressiva. Esse autor reforçou a importância da desneutralização da libido e da agressão em estado psicóticos e afirmou que a desfusão e a desneutralização poderiam estar intimamente relacionadas.

Para Freud, a desfusão das pulsões se manifestariam clinicamente quando ocorresse uma regressão a fases mais primitivas do desenvolvimento.

A ensejada fusão pulsional, segundo Hosenfeld (1991), rumo a uma maior integração psíquica poderia se configurar dentro de um continuum, que vai desde uma fusão denominada de “normal”, à outra considerada patológica.

O autor chamou de fusão patológica o processo em que, na mistura de impulsos libidinais e destrutivos, o poder dos impulsos destrutivos torna-se preponderante, enquanto que na fusão normal, a energia destrutiva fica mitigada e portanto, neutralizada, segundo Hartman.

A ênfase nos aspectos de fusão e desfusão pulsional e mais, o acréscimo de Rosenfeld sobre fusões normais e patológicas, teve como objetivo pensar na integração do Ego que torna-se mais forte,  no caso de uma fusão “normal”, para pensarmos sobre o fenômeno do Perdão, não como um instinto ou uma condição especial de desenvolvimento, ou que somente os mais desenvolvidos ou “elevados” teriam essa capacidade.

Inferimos pois, que a capacidade para perdoar, longe de ser esse instinto in natura, como querem algumas correntes, ou como um instinto mortífero em estado de repressão, como parece ocorrer em alguns mandatos religiosos, ou seja, pseudo -perdão, trata-se de um estado de fusão pulsional com predominância do instinto de vida, que por sua vez, capacita um Self coeso a se distinguir de seus objetos, ou se preferirem, erige um Ego mais saudável, capaz de distinção entre realidade interna e externa. Aqui cabe lembrar Kristeva (1989), quando diz que:

Podemos nos perdoar elevando, graças a alguém que nos ouve, nossa falta ou nosso ferimento a uma ordem à qual estamos certos de pertencer, e eis-nos com garantia contra a depressão. ( Kristeva, Julia, in “O Sol Negro: depressão e melancolia, 1989)

Voltando a Freud, esse Eu ou Ego é capaz de se diferenciar de seus impulsos e fantasias destrutivas, sem configurar-se em um acting, quando assim pede a situação no mundo externo, e por outro lado, se atuadas, que sejam norteadas pelo instinto de vida. Esse campo mental parece se caracterizar inclusive como o ápice de um processo analítico bem sucedido e /ou do desenvolvimento humano enquanto tal. Desenvolver-se é tornar-se consciente de seu mundo fantasmagórico e instaurar o primado da diferenciação entre mundo interno e externo e entre o Self e seus objetos. Essa etapa para Freud é produto de um Ego mais coeso, que por sua vez, demanda um estado de fusão pulsional com relativa higidez.

Cabral, (2021), fala que a capacidade de perdoar demanda uma dupla renúncia, sem que nos atinemos aos parâmetros que torna essa capacidade viável: uma renúncia à hostilidade e ao gozo vingativo e ambos atados à elaboração do sadismo edípico, o qual todos estamos assujeitados. Acrescentamos aqui que  esse estado demanda possivelmente uma fusão pulsional com a primazia dos aspectos amorosos. O gozo vingativo o qual refere esse autor, faz-nos pensar em um acting enquanto uma descarga massiva, sem qualquer possibilidade elaborativa.

Interessante observar que no caso do prisioneiro do campo de extermínio, relatado no início desse trabalho, apesar do ódio ser manifesto e o desejo de vingança tê-lo mantido vivo, poderíamos simultaneamente observar que ele pode fazer uma distinção entre o desejo e sua atuação, o que certamente, naquele momento teria causado a sua morte. Ao contrário, ele escrevia sobre os seus sentimento e os mantinham vivos. Ele dava representatividade para os seus desejos. Com a escrita endereçada a alguém no futuro, como cita Kristeva, mantinha seu sentimento de pertencimento a um “outro” que lhe ouviria empaticamente. Aquele era o seu testemunho, sua capacidade de representação.

Caberia uma pergunta: não seria esse fenômeno o resultado de uma fusão instintual entre o ódio e o amor, com preponderância dos instintos de vida?

Nadjari não declinou de seu desejo de vingança e de ódio que corria em suas entranhas; ao contrário, utilizou-o a favor da vida ‘não estou triste por morrer, mas por não poder me vingar.’ Para se vingar, ele teria que viver – o ódio a favor da vida.

Talvez o perdão genuíno seja uma utopia mas a saúde de um Ego coeso capaz de lidar com a amplitude  e o inter jogo pulsional em nome da  vida, seja uma possível compreensão metapsicológica. Cabe a reflexão se alguns temas colocados no tecido da cultura não estariam mais destinados às pesquisas fenomenológicas do que às psicanalíticas.

Parece não caber ao pensamento psicanalítico uma apologia quer à vingança, quer ao perdão. Tal posição incorreria em uma posição de juízo de valores, consequentemente à uma visão moral e embora tenhamos isso em nossa carne,  nossa carta náutica só nos dá o traçado dos caminhos pulsionais.

Edgar Morin surgiu no diálogo como uma busca pela integração de duas posições antagônicas. O “cabo de guerra” das posições ideológicas, das cisões em qualquer área, não abordam a totalidade do objeto ou do fenômeno;  ao contrário, minimizam a riqueza da complexidade.

Sobre a questão do meio ambiente, como outro aspecto a ser considerado na estruturação do mundo interno, vale ressaltar que Winnicott comenta que o padrão de funcionamento que se estabelece nos primórdios de um caráter duradouro, pode ser de segurança ou insegurança, cujo tom será estabelecido de acordo com o manejo oferecido ao bebê por sua mãe/ambiente. A mãe se adapta às necessidades de seu rebento e quando falha provoca uma distorção nos processos de desenvolvimento, tornando-o comprometido e “enroscado”.

“ O que é mau –  impulsos destrutivos é retido por algum tempo, para ser usado em expressões de raiva, e o que é bom é retido para servir ao crescimento pessoal, bem como à restituição e a reparação, e para fazer o bem ali onde imaginativamente havia sido feito um mal. Como resultado do êxito das ideias e atos reparadores, o bebê torna-se mais audacioso ao permitir-se novas experiencias instintivas.

O bebê, segundo Winiccott, ao poder contar com a existência de um cuidado materno contínuo e pessoal, cria uma capacidade de reparação também maior e a isto se segue um novo patamar de liberdade na experiência instintiva..

O desenvolvimento da capacidade de Concern, termo cunhado por Winnicott,  depende da continuidade do relacionamento pessoal entre o bebê e a figura materna. Com essa capacidade, ele reconhece plenamente os aspectos agressivos e destrutivos presentes no amor instintual e as fantasias inerentes a eles.

Após essas considerações winnicottianas, podemos pensar que a mãe/ambiente, é um facilitador para a fusão pulsional através inclusive, da capacidade de incorporação do objeto bom.

Para finalizar, podemos pensar que a capacidade de “perdoar”, não seria algo natural ao ser humano e sim, quem sabe, o resultado de um complexo, longo e árduo trabalho da mente, sujeito sim ao desequilíbrio natural do interjogo das forças pulsionais.

Nosso olhar é uma possibilidade. Mas quantas outras não existiriam?

Referencias Bibliográficas

BREITENBACH, D. (2022) in Revista Carta Capital, online, consulta, 6/01/2022

CABRAL, A. ( 2020); El Perdón y Sus limites; Ed/ Teseu.

CAMUS, A.( 1996/2017); O  Homem Revoltado. Editora Record.

CAON, J. L. (1998); Metapsicologia do Perdão. Instituto de Psicologia, UFRGS.

FREUD, S. (1915/ 1976); Os Instintos e Suas Vicissitudes; in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud; Editora Imago.

__________(1920/1976); Além do Princípio do Prazer; in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud; Editora Imago.

__________(1923/1976); O Ego e o Id; in  Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud; Editora Imago.

KRISTEVA, J. (1989), Sol Negro – repressão e melancolia; Editora Rocco.

MORAN, E. (2015), O Pensamento Complexo; Trad de Eliane Lisboa , 5º Edição, Ed. Sulina.

ROSENFELD, H. (1991), in MELANIE KLEIN HOJE, Ed. Imago.

WINNICOTT, D. (1963/1983), O Desenvolvimento e a Capacidade de se Preocupar, in O Ambiente e os Processos de Maturação. Ed. Artmed.

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Ataques nas escolas: o Eu com isso! 

Observatório Psicanalítico – OP 386/2023

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

Ataques nas escolas: o Eu com isso!

Comissão de Infância e Adolescência – Febrapsi. Adriana Vilela Jacob Francisco (SBPRP), Claudia Maria Gomes de Freitas (SBPMG), Elizabeth Anderson Madrid Francisco (SPPel), Hemerson Ari Mendes (SPPel), Jane do Carmo Moura Fabian (SBPG), Joice Calza Macedo (SBPCAMP), Katia Wagner Radke (SPPA), Liliana Dutra de Moraes (SPBsb), Lourdes Negreiros (SPFor), Magda Sousa Passos (SPRPE), Maria Esther Mihich (SBPRJ), Maria Fernanda Marques Soares (SPMS), Marisa Helena L. Monteiro (SPRJ), Marly Terra Verdi (GEP-SJRP), Miriam Altman (SBPSP), Patrícia Lima de Oliveira (GEP-SC), Renata Arouca de Oliveira Morais (SPBsb), Valéria Rodrigues Silveira (SPPEL) e Vera Maria H. Pereira de Mello (SBPdePA).

Um homem com uma machadinha invadiu uma escola de ensino infantil em Blumenau, na manhã de quarta-feira, dia 05.04.2023. Matou quatro crianças. Se entregou. Um massacre de nossas crianças, de nossa fonte de vida e esperança. Ameaça recorrente contra o nosso futuro!

Violência não pede licença. Não tem limites. Vem do interior do ser humano, por razões múltiplas. Impotentes, nos interrogamos: como tem se dado a construção dos laços sociais para que tal violência aconteça? Escolas não sabem como lidar, famílias ficam arrasadas. Clima de tragédia se alastra.

Para vivermos em grupo, cabe a cada um a complexa e sofisticada tarefa de lidar com impulsos internos de vida e morte. Este desenvolvimento gradativo se dá na experiência com o outro. Os vínculos nos humanizam. Desde o primeiro, com a mãe ou quem a substitua, mundo interno e externo se configuram, se expandem incluindo pai/substituto, irmãos, família e para além dela, a escola e grupos sociais.

Num contexto complexo, governado por conflitos internos e externos, o homem sobrevive e vive. Em grupo vivencia constante tensão entre expressão e repressão de seus aspectos mais primitivos. Conquistas e dificuldades vão deixando suas marcas. Na aprendizagem da vida em grupo, a renúncia a desejos, a tolerância a frustrações, o respeito aos outros.

A tese freudiana da existência da pulsão de morte se evidencia. A permanente luta entre vida e morte, presente no amálgama das pulsões, dá notícias da existência da violência em todos nós. E, às vezes com temor, lembramo-nos do lema de Terêncio: “Nada do que é humano me é alheio”.

Silenciosa, como o algoz que aparece com toda força de sua violência, a pulsão de morte evidenciou-se enquanto crianças brincavam no parquinho. Exerciam sua expressão mais genuína: brincar/sonhar – brutalmente surpreendidas pela morte.

Onde está o Eu que deixou o Isso agir de forma livre e desenfreada?

Como entender que a qualquer momento uma mente humana pode atuar sem repressões e agir com crueldade insana contra vulneráveis e desamparados?

Como explicar às famílias que crianças, inteiramente dependentes de cuidados, possam ser alvo de tamanha violência?

Como a sociedade se responsabiliza pelos repetitivos e constantes incidentes de extrema violência a que temos assistido?

A disseminação dos discursos de ódio e de práticas violentas estimuladas pelas redes sociais, quando são ancoradas em terrenos de uma mente fragmentada, podem também ser fator catalizador de brutalidade.

“Não quero pensar sobre isso. É horrível demais!” disse alguém.

Sim, é horrível demais! Horrível aceitar, conter dentro da mente as possíveis consequências advindas de um desenvolvimento mental tão precário e sujeito à dominância das pulsões destrutivas. A escassez de “humanidade” implícita em seu comportamento gera horror e afastamento.

Entretanto, sabemos que pulsão de morte pode ser abrandada ou transformada quando enlaçada pela pulsão de vida, quando o indivíduo encontra quem possa se oferecer como bom objeto, suficientemente bom ou capaz de ser continente ao desamparo, aos terrores e à própria violência. Empresta-se, então, a capacidade para pensar e sonhar os pensamentos e sonhos de sua criança, traduzindo a ela seus conteúdos inimagináveis e impensáveis, oferecendo novas possibilidades de expressão.

O autor do massacre, jovem de 25 anos, usou uma “machadinha”. Alguém lembrou da infância, do brinquedo, da cantiga infantil Machadinha: “Ah! Ah! Ah! Minha machadinha!”

Possivelmente, uma cantiga cantada por muitos de nós! Neste cenário de horror, a machadinha, ora brinquedo, se transformou em arma mortífera, expressão da mente primitiva, concreta, violenta de um jovem sem capacidade para pensar, sonhar e brincar.

Quantos massacres com crianças que morrem psiquicamente vão deixando pelo mundo marcas, em si e nos outros, das violências, abandonos e desamparos?

Situação real, acontecendo com assustadora frequência. Denuncia o fracasso de recursos que alimentam a vida e a capacidade de empatia.

Forçados pelas circunstâncias e acontecimentos diários, convivemos a todo momento com tragédias de todos os tipos, banalizadas. Constatamos que prevalece a resolução imediata e impulsiva dos conflitos através da violência e da opressão.

Contudo, alguns acontecimentos ultrapassam a capacidade de continência e tornam-se intoleráveis, impedindo a elaboração. Certas crueldades extrapolam o razoável, arrebentam os limites da civilidade.

O que pode levar um homem a matar crianças? Ocorreu neste episódio e acontece nos genocídios, diretos e indiretos, mundo afora.

Um homem realizou o ato hediondo, e outros, pelas redes sociais, em gozo mórbido, exteriorizam seu sadismo, incentivando a prática de atos semelhantes.

O que sentimos diante disso? O que poderíamos e deveríamos fazer?

E Eu com isso?

Como psicanalistas e cidadãos, horrorizamo-nos. Como profissionais de saúde, praticantes da psicanálise, temos repertório para pensar sobre esse acontecimento. Com elementos para compreender e auxiliar a população atingida pelo trauma, lidamos juntos com o insuportável, buscando lugar para o impacto emocional da situação de dor e desamparo. Temos o recurso da palavra, da escuta, do pensar e da criatividade, buscando elaboração diante de vivências como estas.

Em nível preventivo, nas famílias, há o trabalho voltado às relações iniciais, raiz da subjetividade, com crianças e seus cuidadores. Nas escolas, ampliação dos espaços para elaboração da violência existente em cada um e no grupo. Grupos de escuta. Conversas. Discussão.

O cuidado com a infância se faz além de estratégias propostas como o aumento do policiamento ao redor das escolas. Falamos de cuidado noutro nível: do amparo e condições necessários para o desenvolvimento humano, da manutenção dos sonhos, da criatividade, do futuro…

Importante lembrarmos que onde há crueldade, nasce com-paixão: nossa capacidade humana de nos colocarmos no lugar do outro, com noção de seu sofrimento. Nos solidarizamos. Desejamos contribuir.

Ao escrever este texto expressamos, além da comoção e do assombro que este crime nos causou, nossa profunda com-paixão aos familiares das vítimas.

Como “associação livre musical”, surgiram em revèrie os versos de Arnaldo Antunes, cantados por Adriana Calcanhoto:

“Saiba: todo mundo foi neném, Einstein, Freud e Platão também,

Hitler, Bush e Sadam Hussein,

Quem tem grana e quem não tem…

Saiba: todo mundo teve infância,

Maomé já foi criança,

Arquimedes, Buda, Galileu,

E também você e eu,

Saiba: todo mundo teve medo,

Mesmo que seja segredo,

Nietzsche e Simone de Beauvoir,

Fernandinho Beira-Mar…”

Diante desta barbárie, através de um “jogo do rabisco” de palavras, as integrantes da atual Comissão de Infância e Adolescência da FEBRAPSI redigiram este texto mantendo vivos não só nossa função do pensar, mas nosso papel na sociedade.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

Categoria: Política e Sociedade

Palavras-chave: violência, infância, vínculos, pensar, prevenir

Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

https://febrapsi.org/observatorio-psicanalitico/