Em que ponto estão, os psicanalistas?

Observatório Psicanalítico – OP 223/2021

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

Em que ponto estão, os psicanalistas?

Lúcia Palazzo (SBPRJ)

Em que ponto você está!? Esta pergunta formulada pelos editores do “Intervalo Analítico”, publicação da SBPRJ, ao entrevistar artistas, escritores e profissionais de vários campos do saber, suscita uma indagação muito especial para nós neste momento de intenso movimento nas Sociedades psicanalíticas em relação à promoção de ação afirmativa contra o racismo que estrutura a sociedade brasileira.

Na SBPRJ estamos em um ponto de inflexão da maior importância, pois realizamos, em janeiro, a primeira Assembleia Geral Extraordinária de 2021, primeira também de minha gestão como presidente, que pôs em votação o “Projeto Racial/Social – Acesso ampliado à formação psicanalítica no Instituto de formação”, com o texto completo de regulamentação das regras e procedimentos. Decisões fundamentais sobre a gratuidade da mensalidade, de cursos e de eventos, análise de formação oferecida por membros efetivos com valores firmados pela dupla analítica e dentro das possibilidades financeiras do postulante, entre outros itens de destaque.

Cito um fragmento do texto: “Este projeto se destina a promover a ampliação do acesso à Formação Psicanalítica no Instituto da SBPRJ, prioritariamente, para profissionais negros, indígenas, refugiados…A SBPRJ e seu Instituto de Formação Psicanalítica têm como objetivo alargar o alcance racial e social dos postulantes à formação, expandindo as suas fronteiras, quando estas se apresentam extremamente limitadas por condições financeiras desfavoráveis, que refletem a desigualdade ímpar que existe e persiste em nosso país.”

Ação afirmativa que nos conduz ao cenário favorável das instituições de psicanálise da FEBRAPSI e da FEPAL como, por exemplo, o primeiro Congresso Virtual, “Fronteiras”, com mesas sobre o racismo, violência e desigualdade, cujo movimento intenso dos seus membros, a partir de 2020, culminou na criação de vários polos disseminadores do estudo sobre o racismo.

Em nossa Sociedade o debate foi inaugurado, desde 2010, na gestão de Pedro Gomes, com o Dia Nacional da Consciência Negra, com mesas e grupos de reflexão. Fizemos uma “Caravana para a África”, em 2011, em parceria com o Ministério da Saúde de Moçambique. Do mesmo modo, criamos recentemente a “Comissão de estudos críticos sobre relações raciais e pensamento afrodiaspórico” sob a coordenação de Wania Cidade. Essa contribuição teórica fundamental deslocou o eixo central europeu para uma construção mais consistente das nossas bases fincadas na herança e conhecimento dos povos originários.

Os efeitos dessa abertura recaem sobre todos, como afirma bell hooks, autora de “Olhares negros”, de forma muito bonita: “A descolonização… continua a ser um ato de confrontação com um sistema de pensamento hegemônico; é, consequentemente, um imenso processo de liberação histórica e cultural. Como tal, a descolonização se torna a contestação de todas as formas e estruturas dominantes, sejam elas linguísticas, discursivas ou ideológicas. Ademais, a descolonização passou a ser entendida como um ato de exorcismo tanto para o colonizado como para o colonizador. Para os dois lados, deve ser um processo de libertação.”

O caminho a trilhar não tem retorno neste processo de descolonização. Precisamos aprimorar os mecanismos de poder institucionais para que cada vez mais a psicanálise possa alcançar pessoas e seja um instrumento de transformação.

Vivemos em bolhas segregacionistas, distantes da maioria da população excluída social e economicamente. Somos analistas de pequena parcela da humanidade, que detém o poder econômico e se sente ameaçada com as projeções da sua própria violência, sem se dar conta do aprisionamento que é escravizar o outro de forma abjeta; afinal, nesta hierarquização de valores, não se trata de um semelhante. Dominamos os lugares de poder para manter privilégios para poucos afortunados, agarrados a um sistema perverso de submetimento e humilhação. O sofrimento humano pouco comove nestes tempos de pandemia. É urgente devolver o que foi retirado de quem construiu o país com sua carne, e neste ponto em que nos encontramos, precisamos enfrentar as nossas próprias resistências.

Elizabeth Ann Danto, no seu livro “As clínicas públicas de Freud”, revela aos nossos olhos um panorama fascinante, quase inédito, tendo em vista a ausência de divulgação sobre a face política de Freud no movimento psicanalítico no século passado, anos 20, portanto, há 100 anos, em prol de oferecer tratamento gratuito aos menos favorecidos.

Em 1918, no Congresso de Budapeste, já havia responsabilidade social evidente: “O discurso de Budapeste sobre ‘a consciência da sociedade’ refletia o despertar pessoal de Freud diante da realidade de um novo contrato social, um novo paradigma cultural e político que atraía quase todo promotor de reformas…”

Até o final da vida, “Freud apoiou as clínicas psicanalíticas gratuitas, lutou por honorários flexíveis e defendeu a prática da análise leiga, todos eles desvios substanciais de uma prática de privilégio dos médicos e de dependência dos seus pacientes.”

A transmissão psicanalítica sempre foi um assunto controverso e tema de muitos debates, como na “Revista Calibán”, Tradição/Invenção, de 2012. E consultar a produção cientifica da América Latina é fundamental para o intercâmbio de ideias. Este número apresenta diversos textos com autores da região sobre a transmissão e o ensino, entre eles Alberto Cabral, que faz uma reflexão do lugar de analistas historiadores:

“Quando nos ocupamos – como analistas – da história de nosso movimento, não o fazemos sob a perspectiva dos anatomistas, que operam com corpos consumados e consumidos. O que fazemos é tentar reconhecer – no que historiamos – aqueles restos que palpitam ainda como não consumados, enquanto continuam a articular a velha aspiração freudiana de criar os meios adequados para a difusão e a transmissão da psicanálise. Uma aspiração impossível, certamente…, mas que em cada época ganha corpo em formas perfectíveis.”

Uma experiência coletiva que ganha corpo entre nós a partir de um movimento com força e vontade política, no sentido de combater as desigualdades e o racismo estrutural, numa articulação desde o lugar de cidadania que nos cabe. Não é possível calar, mesmo com uma missão quase impossível de se realizar com o atual retrocesso civilizatório. A experiência do inconsciente é datada historicamente e circunscrita na singularidade do desejo de cada sujeito, mas será também nos laços sociais e afetivos que construiremos as saídas para o sofrimento individual e coletivo.

Na tentativa de historicizar em que ponto estamos, penso ser fundamental levantar o aspecto da unanimidade em relação à votação do projeto com a primeira pergunta formulada à assembleia: “Você aprova o projeto de regulamentação da Ampliação do Acesso Racial/Social à Formação?”

Os membros presentes naquela noite votaram que sim, 100% de aprovação, com a alegria de estarmos inaugurando novos tempos. Sem dúvida, uma conquista que nos honra: inesquecível. Marca do trabalho de muitos admiráveis colegas como Ney Marinho, atual diretor do Instituto.

No entanto, será essa a realidade em que vivemos? Existe unanimidade e consciência da nossa branquitude (já que estamos tratando de relações raciais e do privilégio), deste lugar de poder e decisão? Ou será um processo iniciado no momento ímpar da votação, quando reafirmamos o desejo de mudança e de abertura para receber negros e indígenas? A hospitalidade encontra limites na ferida que aponta a ausência desses corpos e saberes excluídos?
Ainda sob o impacto da Assembleia, sem dúvida extraordinária, escrevo no fervilhar de muitos pensamentos.

Certamente, a unanimidade compartilhada neste dia histórico se deu no sentido de aceitarmos correr riscos, aceitar o impacto das diferenças e nos afetar emocionalmente. De aceitarmos fazer parte de uma história que ainda será construída e que desconhecemos o que está por vir. Ficar à beira do abismo ao aceitar dividir privilégios, dividir espaço, compartilhar emoções insuspeitas. Uma divisão em que todos perdem e todos ganham. Sentir na carne a ferida, a marca silenciosa que não cessa de sangrar.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:
https://febrapsi.org/observatorio-psicanalitico/

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