Um simples abraço

Observatório Psicanalítico – OP 214/2020

 

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo

 

Um simples abraço

 

Gustavo Gil Alarcão (SBPSP)

 

Que 2020 se despeça, “temos sangrado demais, temos chorado pra cachorro, ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. Belchior, em versão remixada e descoberta pelas crianças da casa no Spotify, foi escutado muitas vezes por aqui. Deu alento ao “ano impossível”, que torna igualmente impossível a escrita de um texto nesta altura dos acontecimentos que não preste solidariedade às milhares de vítimas da pandemia. Processo duro que se arrasta e que leva muitos de nós ao limite, quando não à própria morte. Vivenciamos diariamente as contingências de nossa condição de humanidade, tão espetacular em alguns aspectos e igualmente frágil e vulnerável em outros, sem esquecer que para alguns, as agruras são incomparavelmente mais sofridas.

 

Por razões que continuarei pesquisando, a vontade de escrever esse texto emergiu no último domingo. A necessidade de colocar em palavras uma breve e trivial experiência vivida na clínica. Noto certa apreensão entre a vontade de partilhá-lo e os “riscos”. Tolice? Tomara. Assumo os riscos, aprendi que não há psicanálise onde não há amor. Se aprendi errado culpem Freud, Ferenczi, Winnicott, Bion, Klein, Laplanche, Pontalis, minhas análises, supervisores e muitos amigos –que gostaria de nomear um por um.

 

No momento da despedida de final de ano de um paciente nos olhamos. Digo: “o abraço, acho que não pode”. Ele me interrompe e diz: “acho que aqui, pode” e me dá um abraço. Afetos. Uma lágrima. Ele: “obrigado, por tudo”. Um abraço, um simples-abraço.

 

Sem sentimentalismo: ele me deu uma lição. Precisava daquele abraço. Precisávamos daquele abraço. Ele foi amoroso. Ele foi transgressivo. Ele foi suficiente. Nem eu, nem ele menosprezamos as orientações de distanciamento físico – insistirei que é físico, e não social. O analista daquele paciente também é ciente das recomendações técnicas e éticas da psicanálise? Acho que é…

 

“Mas já estava atendendo presencialmente?” Entrego-me: “sim, algumas poucas pessoas”. Saude física e mental são indissociáveis e igualmente importantes. Considero cada análise vital, necessária e indispensável, o que me encoraja e estimula a enfrentar situações, sem perder de vista a importância dos contextos, tendo em vista os riscos envolvidos. Algumas pessoas precisaram de atendimentos presenciais, mesmo na pandemia, nada incrível, nada absurdo, muito humano, demasiado humano.

 

Quando falei meio constrangido ao final da sessão “o abraço, não pode” estava buscando prudência, afinal, estamos evitando o contato físico, usando máscaras para evitar a possibilidade de propagação do vírus. Sim, todos estamos, inclusive ele e eu.

 

Quando ele me diz “aqui pode”, convocou-me instantaneamente à escolha entre o não-prudente e o sim-transgressivo. Transgredimos. Uma transgressão-amorosa. Ele me lembra que “aqui” é sim lugar de transgressões, muitas, várias. Nós que vamos ao analista sabemos disso. “Ali” desfilam fantasias, ideias, sentimentos, falas, sonhos e vivências extremamente humanas: das questões mais triviais, às estranhezas mais instigantes.

 

Alto lá! Já nos imagino novamente no tribunal da inquisição com críticas e mais críticas: pandemia, psicanálise, limites. Eu concordo com todas, o paciente também. Mentira, não concordamos com todas, mas com algumas. Estamos, indubitavelmente, conscientes do estado das coisas. Não imaginamos que ali, no consultório, estamos imunizados. Não fazemos um conluio. Temos limites bem configurados, acreditem ou não.

 

Pausa (como diz um de meus filhos).

 

Sobre a apropriação perversa e distorcida da liberdade- Nesses últimos anos temos sido constantemente expostos à barbárie e à crueldade como poucas vezes na história. Não, barbaridade e crueldade não são novidades e não serão extirpadas do mundo. Mas, o que se assiste mundo afora e Brasil adentro com o avanço dos extremistas-radicais-intolerantes é o uso e a manipulação da mentira, do ataque, da banalização. Defensores-exclusivos-de-si-próprios querem um mundo de iguais, eugenicamente iguais. Pudessem, exterminavam sem piedade quem não reza sob sua cartilha de valores e, caso não exterminassem, deportariam, prenderiam, torturariam. Esse grupo tem uma estratégia perversa: usam e abusam da palavra liberdade. Tudo que fazem é em nome da liberdade, em defesa da liberdade. Mentem. Usam intencionalmente e maliciosamente esta palavra, buscando enxertar esta leitura distorcida no imaginário coletivo. Somos coaptados, ficamos hiper-alertas e muito desconfiados: quem pode reivindicar gestos de liberdade, se ela tem sido tão vilipendiada? É compreensível, é um efeito inevitável do uso abusivo e intencionalmente fraudulento da palavra e do conceito.  

 

Despausa (como diz o outro filho).

 

Um gesto espontâneo é um gesto livre e ainda pode ser sentido como um gesto absolutamente amoroso. Como eu queria que todos tivessem sentido o calor daquele abraço. Todos nós, que estamos sufocados e asfixiados por tudo isso aí. Um abraço-transgressivo, suficientemente transgressivo: um gesto espontâneo, em tempos que afetos precisam também romper limites.

 

Passamos álcool nas mãos. Era o último atendimento do dia. Sei que ele foi para casa, assim como eu também. Corremos riscos? Alguns. Antes, com outras pessoas, em despedidas à distância, lágrimas também rolaram. Esse ano, ah esse ano! Quantos e quantos agradecimentos, quanta gratidão e quanta amizade. As câmeras, vídeos e telefones que foram tão úteis e possibilitaram conexões profundas e muito verdadeiras ainda não substituíram aquele abraço… aquele abraço foi um sopro de vida.  

 

Um último adendo: para aqueles que dirão que se trata apenas de carência do analista, de manejo inadequado da contratransferência ou atuação do analista, de rompimento do enquadre, de conluio, de conchavo, de exemplo do que “não é psicanálise”, eu sugiro o vídeo de Amarelo, na versão que meus filhos me mostraram: Belchior remixado com as participações de Emicida, Majur e Pablo Vittar – https://youtu.be/uJcjV6g5mV8

 

Que se pode fazer quando a vida se impõe? Um abraço, “com a fúria da beleza do sol”.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

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