Somos fruto de migrações

Observatório Psicanalítico – 92/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Somos fruto de migrações.

Augusta Gerchmann (SBPdePA)

Não fosse a real ameaça a sua vida e de sua família, infundida pela perseguição nazista, Freud não teria deixado a Áustria e migrado para Inglaterra; não fosse a proteção de Marie Bonaparte e o reconhecimento que já conquistara, ele e sua família teriam tido destino comum a 6 milhões de judeus na segunda guerra. 

O mesmo se deu com Eitingon, responsável pela criação do nosso primeiro modelo de formação e um dos fundadores da primeira Policlínica de Berlim. 

Igualmente, as duas primeiras Sociedades Psicanalíticas no Brasil devem sua criação e reconhecimento à imigração.

Em 1936, a Dra. Adelheid Koch transfere-se para São Paulo, como didata da SBPSP, e, em 1948, Werner Kemper é aceito como didata da SPRJ, com intermediação de Ernest Jones. Este último permanecera dirigindo a Policlínica em Berlim, depois que as portas foram fechadas para os psicanalistas judeus.

Nas décadas seguintes, países latino-americanos foram tomados por repressivos regimes militares, gerando migrações de analistas, os quais, em boa monta, naturalizaram-se na Europa e jamais retornaram. 

Da Argentina, onde faziam sua formação, brasileiros da região Sul puderam acompanhar a onda de violência que assolava o país, levando muitos colegas a situações de fuga e migração.

Facilmente se vê que a história da psicanálise, desde a sua criação, cruza-se com as histórias pessoais de migração, frequentemente relacionadas a casos de perseguição, rejeição e trauma. A maior parte de nós, por circunstâncias próprias ou intergeracionais, é resultado, também, de histórias de migração.

As grandes tragédias do mundo, sejam quais forem os povos, religiões e países envolvidos, sempre fazem renascer o tema da migração, da abertura de fronteiras, do acolhimento daqueles que, movidos pelo medo da fome, do frio e da violência e pela vontade de (sobre)viver, tomam a difícil decisão de ir em busca do desconhecido (unheimliche) – que há de ser melhor do que o conhecido (heimlich).

 A este desejo e esperança de mudança, interpõem-se as particularidades daqueles a quem cabe a decisão de acolher quem pede abrigo e daqueles que compartilharão todos os efeitos da chegada de imigrantes.

Por um lado, as consequências das ondas migratórias para os habitantes do país de chegada não podem ser desconsideradas; por outro, não há como não lembrar das centenas de milhares que morreram por ter-lhes sido negado acesso a uma nova esperança. A História demonstra que a omissão não é inocente e que cerrar os olhos, mentir e calar também fazem perecer – orgânica e espiritualmente – a humanidade. 

Além disso, a longo prazo, os imigrantes promovem novas formas de convívio e novos valores sociais que se mostram benéficos aos países que os receberam.

Nós, psicanalistas, cujo trabalho cotidiano envolve ajudar o outro a tomar decisões e lidar com o desejo, somos convocados, frente a uma cultura de desapropriação da subjetividade, a ampliar a escuta e discernir o discurso paranoico e ameaçador do “status quo”, que encontra no desamparo presa fácil, oferecendo abrigo em explicações simplórias.

Quantas pessoas que hoje nos procuram encontram-se em situação de exílio e isolamento psíquico, à deriva num mundo caótico, traumatizados pelas agressões aos seus desejos, reeditando espaços vazios de desamparo primário podendo retornar como fantasma perseguidor. Ao não saber o que buscar, vão atrás do que já foi vivido, caindo na emboscada da compulsão.

Nessa perspectiva, cabe lembrar que fechar as portas ao outro não é uma inocente omissão protetora e que os progressos que vivenciamos ao longo dos séculos são, também, fruto do acolhimento proporcionado por seres humanos conscientes e empáticos, reconhecendo no estrangeiro o semelhante. 

A perda da sensibilidade, como descreve Bauman, ancora-se na obsessão pelo poder, promovendo uma ilusão de futuro, sustentada por falsas verdades que se ancoram, por sua vez, em velhas identificações e geram apenas declínio social.

( Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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