Basta de ideologia de gênero

Observatório Psicanalítico 26/2017

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

 

Basta de ideologia de gênero

Maria Luíza Gastal

 

Circula nas redes sociais um vídeo de Felipe Nery, do Instituto Sophia Perennis) “constituído por pais e professores católicos que buscam (…) resgatar e atualizar os princípios fundamentais da Educação Patrística”). Nery não menciona suas motivações religiosas, anunciando como tema o risco que a “ideologia de gênero” representa para as crianças brasileiras. Travestindo-se de um cientificismo torto, com dados sem fontes, atribuiu ao MEC e ao governo um documento que é fruto de ampla consulta, por força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – a Base Comum Curricular Nacional, que traz referência à diversidade de gênero.

Aqui falarei a partir de quatro lugares: psicanalista, mãe, bióloga, e professora, embora o assunto venha me tocando mais de perto como mãe de uma criança em idade escolar e como formadora de professores de biologia, ciência que tem resistido aos ataques dos que pretendem propor uma “biologia cristã” (ao modo da “psicologia cristã). Junto com a psicanálise e a pedagogia, traz elementos importantes para o debate.

Em primeiro lugar, assinalemos que a referência a gênero na BCCN não tem relação com “ideologia de gênero”. Ideologia de gênero é um espantalho, cunhado para esvaziar a palavra que importa: gênero. Podemos suprimir a palavra gênero, reconhecendo que o sexo não é binário. No que se refere à herança biológica, há muitas situações intermediárias, físicas e emocionais, entre “machos típicos” e “fêmeas típicas”; há bem mais do que XX e XY no sexo. A revista Nature (2015), dedicou um número ao tema. Biologia, e não ideologia. (https://www.nature.com/news/sex-redefined-1.16943). Somado à herança cromossômica há o desenvolvimento ontogenético. Hormônios maternos, dentre outros aspectos, repercutem na expressão do sexo (ou gênero) e podem resultar também em diferenças importantes entre o sexo da genitália e o sexo cerebral (como a pessoa se percebe), diferenças ligadas ao desenvolvimento embrionário da pessoa (https://search.proquest.com/…/99608bb6ed322a9736f74f68e5…/1…).

Esta não é uma invenção da biologia: na República Dominicana, por exemplo, há culturas que reconhecem um terceiro sexo, resultado de um pseudohermafroditismo masculino, causado pela deficiência em uma enzima. Essas pessoas nascem com cariótipo XY e genitália externa não virilizada, desenvolvendo caracteres masculinos na puberdade e são chamadas de guevedoche (“pênis aos doze”), possuindo estatuto social e biológico distinto de homens e mulheres (http://onlinelibrary.wiley.com/…/10.1525/aa.1990.92.2.…/full).

Finalmente, fatores sociais e familiares (aqui estamos no âmbito também da psicanálise) exercem influência sobre o gênero. Mas a biologia antecede tais fatores. Biologia e cultura não são separadas.

Além de equívocos sobre gênero, o vídeo traz dados problemáticos. Menciona um aumento de 1000%, em cinco anos, no número de crianças submetidas a “tratamento transgênero” na Grã-Bretanha, resultado da “ideologia de gênero” nas escolas. Não encontrei os dados mencionados (não há menção às fontes), mas um crescimento de 20 para 200, por exemplo, representaria um aumento de 1000%. Muito poucos, ainda. Poderia significar um “estímulo artificial” ao tratamento, mas também que mais famílias estão compreendendo as particularidades de seus filhos. Havia menos homossexuais e transexuais há alguns anos ou menos homossexuais e transexuais que se assumiam publicamente como tais?

A questão precisa ser compreendida para além dos maniqueísmos que sugerem que sexo se escolhe por influência de aulas (que poder teriam os professores!). Nas escolas, inúmeras crianças e adolescentes não podem expressar sua sexualidade de forma verdadeira, ou sequer conversar com pais, professores e colegas sobre ela. O risco de suicídio desses jovens é elevado, associado a sentimentos de solidão, desamparo e inadequação, frutos do preconceito de suas famílias e amigos (http://pediatrics.aappublications.org/…/…/87/6/869.full.pdf…).

A violência é absurda. Em 2016 foram assassinadas 329 homossexuais e transexuais no Brasil (http://agenciabrasil.ebc.com.br/…/numero-de-homicidios-de-p…). Essa é uma questão muito grave – trata-se de defender a vida, o que pressupõe uma educação para a tolerância e respeito.

Efetivamente, sugerir que a pessoa “escolherá” seu sexo é um equívoco. Ela escolhe se assumirá ou não sua sexualidade. E a sociedade, se a aceitará ou não. Numa coisa Felipe Nery está certo: “Promover a diversidade de gênero” é impossível: a natureza impõe a diversidade. O objetivo da BCCN é promover a tolerância e o respeito à diversidade. O assunto é complexo e envolve a saúde e a vida de seres humanos. O medo é péssimo conselheiro e é nele que fundamentalistas religiosos ou iniciativas como o Escola sem Partido se apoiam. É preciso fazer o contraponto da razão e do amor. Basta de ideologia de gênero. Falemos do que importa: a diversidade e a vida.

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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