As nossas guerras de cada dia

Observatório Psicanalítico – 186/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do Mundo.

As nossas guerras de cada dia

Maria Fernanda Soares (SPMS)

Recentemente venho acompanhando as discussões do Observatório Psicanalítico (OP) FEBRAPSI. Retratam o que vivemos, nossos dramas, impulsionados e conturbados pelas barbaridades de uma guerra política e pelos perigos da guerra biológica. Em meio ao desassossego, revolta, incertezas, temos a guerra interna, resultando num desamparo imenso e cada vez maior. E o que me vem à mente, com frequência, é a correspondência entre Freud e Einstein.

O corona vírus invadiu ruidosamente nossas vidas, com sua invisibilidade enigmática e dramática. É um desconhecido, contra o qual nos sentimos muito impotentes, ameaçados pelo terror e dor que vai causando por onde passa, inflexível, traiçoeiro em sua ação destrutiva, alastrando-se exponencialmente ao menor descuido. No consultório, revolucionou nossas premissas, obrigando-nos a reconsiderar cada detalhe de nosso dia a dia, subvertendo o setting tal como o concebemos, forçando-nos a tomar posições que dificilmente adotaríamos em outras situações, como a análise on line.

Nos primeiros dias, a vertiginosa mudança provocou um turbilhão de novos registros, associações, vivências que necessitavam ser minimamente decantadas para serem pensadas. A urgência da cena traumática nos impunha a ação acima da reflexão. Realidade externa e interna eram fáceis de serem confundidas, e isto não tinha a ver com aquele material ou paciente. Muita canseira e força para ultrapassar obstáculos, pelas dificuldades de conexão com a internet, com o paciente, conosco. Foi o reino do “com desejo e com memória”, e uma insuficiência de “capacidade negativa” para elaborar tudo aquilo. E o luto? Ah, como era boa a nossa vida… A promessa fantástica era a do “vai passar e teremos aquilo que perdemos”. Que medo de lidar com tudo o que tínhamos que aprender, apreender e … nem sei, … a vida por um fio! 

 Mas, ao mesmo tempo, tanta coisa interessante, detalhes ainda não vistos, novos insights e flashes. O impacto vivido pela necessidade de isolamento diminuiu quando se viu que a distância não é tão grande assim: o paciente está bem aqui, às vezes bem mais perto do que jamais esteve, abordando com menor resistência temas antes evitados. Aos poucos, o campo bombardeado vai se descortinando, reconfigurando, ampliando e enriquecendo. Tesouros guardados são expostos e examinados cuidadosamente, quinquilharias são retiradas de cena. E o encontro analítico é possível, afinal, são muitas coisas já compartilhadas há tempos, tem um processo em curso, o “aqui-e-agora” prevalece.

 Gradativamente, o ser-vírus que não vemos, mas que devemos acreditar que pode estar aqui, nos obriga a conviver com a morte: todos seremos contaminados, mas nem todos morreremos disso. Traumático. Impoē-se duas verdades: somos impotentes diante da morte certa e podemos ser causadores da morte de alguém. Cada um pode ser o transmissor-agressor e, ao mesmo tempo, o contaminado-agredido. Somos vítimas, se infectados, carrascos-agressores enquanto hospedeiros – o próprio vírus, quando contagiamos outra pessoa. No primeiro impacto, sofremos a trágica desilusão de não sermos eternos. Muito difícil de aceitar. Quando nos recobramos desta ferida narcísica, nos deparamos com a responsabilidade sobre nossa agressividade e a capacidade de matar alguém. Não basta nos cuidarmos para não morrer. Temos que cuidar também dos outros, se os amamos.

Um vírus tão diminuto expõe nossa fragilidade, nossa transitoriedade, nosso profundo desamparo. Obriga-o dar-se conta, de forma implacável, de que somos humanos, morremos, dependemos.

A história não fica restrita aos próprios traumas, conflitos, anseios e relacionamentos. Estamos em uma cultura. Nosso país há anos vem se mostrando tão adoecido! Muitos desmandos, desgovernos, abusos de toda ordem, repetidos crimes hediondos, que contaminam e ferem gerações de modo irreversível. A cada problema, às vezes a solução é fazer o oposto e sabemos que assim nada será mudado. Ao contrário, resulta num acirramento das defesas, dos sintomas.

Nossos traumas coletivos estão sendo expostos e necessitam ser pensados. Em um momento tão perigoso para a nossa sobrevivência, ficamos mais feridos quando vemos que nossos dirigentes em geral se mostram incapazes de exercer as funções que ocupam, e avistamos um futuro não menos perverso.

Como cidadã, sinto-me impotente. Posso fazer meus protestos e reivindicar de diversas formas, procurar amigos, políticos e a justiça… E o que mais? Aguardar o momento do voto.

Agora, quando me lembro de Freud, quando diz que “tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra” (Freud, 1933), me renovo e me fortaleço: tenho a psicanálise. Esta é a minha saída (e não uma arma) para favorecer mudanças, ampliar os horizontes de cada paciente, de cada aluno. A psicanálise que nos ensina a nos conhecer, a viver o presente com mais criatividade, a ter um futuro (quem sabe?) melhor do que aquele prescrito por nossos scripts traumáticos e conflitivos.

 Quando me reencontro com a psicanálise, a instituição psicanalítica pode ser minha referência. Ela me dá essa sensação reconfortante de pertencer a um grupo, que tem no valor do conhecimento de si mesmo  e das transformações os meios para solucionar os problemas algum dia.

Assim, como nós, psicanalistas, podemos contribuir para a elaboração destes tantos sofrimentos vividos que presenciamos? Temo que percamos de vista nosso lugar e o timing correto para nos posicionarmos. Nascemos numa crise, vivemos em crise. A vida é assim. Qual o papel de uma instituição psicanalítica viva? É sobre isso que venho refletindo com minha instituição.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

Imagem: “Invisível mundo” – René Magrite (1954)

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

https://febrapsi.org/observatorio-psicanalitico/

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