Será que aprenderemos a lição?

Observatório Psicanalítico – 152/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Será que aprenderemos a lição?

Mauricio Miguel Gadbem (SBPRJ)

 

Silêncio. Minha casa numa rua barulhenta do centro da cidade ouve o silêncio. É  noite de sábado, e só o silêncio contaminado por latidos trafega. No céu a imagem de uma enfermeira com o dedo em riste sobre os lábios mandando fazer silêncio. O mundo virou um grande hospital e cada casa é uma enfermaria na qual nós, reclusos, aguardamos os resultados e as providências. 

 

“A atmosfera se torna opressiva, pesada como chumbo. Não se ouve o cantar de um único passarinho, e um silêncio mortal invade tudo, envolvendo-me, como se me quisesse arrastar para um abismo escuro e profundo.”

 

Estas são palavras de Anne Frank, deitadas em seu diário. Mas, bem poderiam ser nossas próprias palavras diante da ameaça que todos estamos vivendo, sob os riscos que pululam de uma pandemia. Riscos objetivos e também subjetivos. Se, de um lado o horror de ser contaminado, sucumbir, e precisar de cuidados intensivos para nos prover daquilo que nos é mais caro, o ar; de outro, tememos ter de conviver com fantasmas que, de tão vivos, quase podem ser tocados.

 

Estamos atravessando a floresta de Pã, ladeados por ninguém, e a noite nunca esteve tão escura. Apenas o opróbrio nos acompanha. Somos todos personagens de um filme de Kurosawa esperando a luz no fim do túnel. Esperando acordar de um pesadelo; esperando, congelados de medo, o abraço quente da morte. Em Nova Iorque, profissionais da saúde ao saírem pro trabalho estão deixando prontos seus testamentos.

 

Encomenda água benta. Recomenda álcool em gel. De repente, fomos todos surpreendidos por esse algoz quase invisível que nos obrigou ao isolamento e às práticas próprias dos rituais obsessivos. Estas, curiosamente, são as formas de defesa mais primitivas que podemos lançar mão. Todos os bebês e crianças as praticam, espontaneamente, mobilizados por suas fantasias, tanto de incorporação do outro como de controle sobre o ambiente. 

 

De uma ou de outra forma, busca-se defender a condição narcísica ameaçada pelo que apresenta a realidade. Este é o cerne da questão. Importância menor tem a virulência do vírus, ela sempre será do tamanho de nosso narcisismo. E, como o bebê ficamos entre as duas faces – a impotência e a onipotência – da mesma moeda. Daí a negação que rege a conduta de muitos. Daí, a cessão à sedução dos apelos mais mundanos.

 

Mundanos somos todos, humanos nem tanto assim. E digo isso porque vejo na desumanidade um caldo de cultura que serve ao vírus do ódio, ao vírus do egoísmo, ao vírus da violência, ao vírus do ceticismo, e a tantos outros que se multiplicam em nossos tempos que falta espaço para o exercício do amor. Esse soa dissonante. O amor, filho de Édipo, considera o outro. E, não raras vezes, estamos aquém, orais e anais, entre a gula e o gole, confundindo querer e poder.

 

O homem está pobre de humanidade. Na verdade, ele precisaria sair de seu isolamento e se deixar contaminar pelo sorriso e pelo choro verdadeiros que se escondem atrás das telas de computadores. Eliminar os psicopatas da política. Dar de comer a quem tem fome de educação. Devolver aos jovens a capacidade de sonhar. Dar aos velhos a segurança de um final feliz. E, enfim, deixar que a mãe-terra, em silêncio, seja berço do nascimento de um novo homem.

 

Será que aprenderemos a lição?

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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