Os Sertões e a guerra de narrativas

Observatório Psicanalítico – 113/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo.

Os Sertões e a guerra de narrativas

Cristiana Tiradentes Boaventura (SBPSP)

 Os Sertõesé uma das obras mais importantes da literatura brasileira. Passados mais de um século depois do seu lançamento, imperecível e fundamental, nesses últimos dias, a obra voltou à pauta na maior festa literária brasileira, a Flip: Euclides da Cunha foi o homenageado deste ano.

Falar sobre Os Sertões, entretanto, é entrar em terreno perigoso, uma vez que a fortuna crítica do livro é uma das maiores do repertório da crítica literária brasileira. Nesse sentido, seria possível ao psicanalista encontrar campo aberto para acrescentar ou introduzir seu discurso? Escolhi, então, um pequeno recorte para levantar uma questão.

O nosso imaginário nacional sobre a guerra de Canudos deve-se em muito a existência dessa potência literária. Será que se Euclides não tivesse se lançado a essa empreitada teríamos hoje como pensar o horror que foi a guerra de Canudos? Disso desdobram-se outras questões: quem detém (ou retém?) a narrativa oficial da história? Como se constrói um sentido para a história? E como cada indivíduo reage à brutalidade e ao horror impingido ao próprio corpo?

Na Nota Preliminar, datada de 1901, Euclides afirma: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”. A ideia pressuposta em denunciar é a de declarar algo, incriminar, deixar que se conheça, e Euclides se empenhou nessa campanha pessoal pela lente de quem experienciou parte do que foi narrado in loco. Muitos correspondentes foram enviados à região, muitos vieses foram veiculados pela imprensa da época. Fatos, distorções dos fatos, uma guerra de narrativas estampada na imprensa do eixo Rio-São Paulo principalmente com o filtro do governo que, divulgando telegramas e cartas trocados com os combatentes, por muitas vezes notícias falsas, insistentemente tentava amalgamar o imaginário da guerra. Mas, Euclides tinha um propósito: “fui convidado em S. Paulo para estudar a região de Canudos (…) considereis que tínheis um nobre papel em tudo isso e almejo defini-lo bem perante o futuro, Consegui-lo-ei? Anima-me a intenção de ser o mais justo possível”.

Entretanto, Euclides esbarra na fragilidade da linguagem frente ao horror. Isso revela-se na impossibilidade de descrever algumas imagens. Ele opta por uma narrativa ausente, um não narrar, justamente pela inenarrabilidade do horror. A interpretação é construída no silêncio do não dito. Os momentos finais de Canudos nos chegam por meio de uma narrativa ausente. “Fechemos este livro. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos”. Em alguns momentos da obra, Euclides vacila sobre a própria narrativa, interroga-se se o futuro dará autenticidade a sua história, tamanha a desumanidade dos acontecimentos: atos tão bárbaros poderiam ser entendidos no livro como ficção, uma elaboração literária, e não uma descrição da guerra? Para nossa sorte o registro épico nos chega como testemunho de um tempo que não deve ser esquecido, que não deve ser apagado.

Das questões que levantei para pensar as construções narrativas da história, uma delas é particularmente interessante. Trata-se da narrativa dos soldados. O espaço aqui não me permite subscrever os textos, mas deixo como indicação de leitura: “A Luta”/ “Nova fase da luta”/ Parte I. Lá, Euclides descreve principalmente em duas passagens, “Páginas demoníacas” e “Palimpsestos ultrajantes”, a prática dos soldados de deixarem escrituras nas ruínas dos ranchos em que acampavam, protestos, “num coro silencioso de impropérios e pragas”. Uma escrita fragmentada, borrada nas paredes, escritas à carvão, um rastro de histórias de indivíduos que não sabemos o que pensavam, o que queriam, o que verdadeiramente sabiam e conheciam daquele sertão, daquele povo sertanejo, daquele outro que num instante se tornou um inimigo assombroso a ser combatido a qualquer custo. 

Rastros anônimos, desdobramentos de uma guerra cruel… Os soldados utilizavam pequenas frestas para expor suas próprias adversidades, aflições, amarguras. Tentando construir algum sentido para a própria experiência? E contra quem? Contra o que? Contra a própria situação em que estavam postos? Ou contra o inimigo imaginado? Tudo isso junto, possivelmente. Uma indicação de algo difícil de apreender, sendo a fragmentação e a brutalidade características deste texto coletivo. Chega-nos como rastros de histórias, cicatrizes talhadas nas paredes em ruínas, uma memória coletiva do conflito, mas também individual. 

Talvez se possa metonimicamente falar em uma espécie de zeitgeistcircunscrito a Canudos, aos milhares de homens que atravessaram aquelas paragens e foram tomados por um espírito comum que hoje nos chega no distanciamento com perplexidade.

Ora, na condição de indivíduos implicados em pensar em perspectiva, a metáfora do palimpsesto fica como imagem do que não pode ser dissipado, da constante construção na qual um texto se arquiteta sobre outro, apagando e evidenciando rastros. E abre uma brecha para uma fala crítica que um psicanalista, engajado na literatura, pode elaborar.

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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