LGBTTQ + Etcetera: da Consolação à República

Observatório Psicanalítico – 110/2019

Ensaios sobre acontecimentos sociais, culturais e políticos do Brasil e do mundo. 

LGBTTQ+ Etcetera: da Consolação à República

Eduardo de São Thiago Martins (SBPSP)

Era um mar de gente, colorido e cintilante. Três milhões de pessoas.

Por mais de três horas, ininterruptamente, assistíamos à dispersão da maior Parada do Orgulho LGBTTQ+ do mundo, da varanda de um bar na Avenida Ipiranga. Uma multidão sem fim descia a Consolação em direção à República.

Consolação. Um grupo de mulheres, das mais variadas idades, em suas batas laranja flúor do “Movimento Mães pela Diversidade”, celebravam o sucesso da festa. Poucos dias antes, na LGBT Pride Parade de Pittsburgh (EUA), havia sido notícia o homem que oferecia “abraços de pai grátis” aos passantes que, emocionados – muitos deles expulsos de suas famílias por amarem quem amam ou por serem quem são – aceitavam a oferta e lhe desabafavam suas histórias pessoais.

– Para onde estão indo? – pergunto, observando a multidão de caminhantes, ao rapaz de meia arrastão ao meu lado.

– É um êxodo – ele responde, sóbrio.

 “É gente demais para caber no armário. Espero que as ruas sejam o destino e não a origem deste êxodo”, penso, ao me recordar das falas opressivas e preconceituosas de muitos que hoje nos governam.

 Afinal, neste êxodo, a terra prometida é o espaço público. Res publica, coisa pública.

 A Parada LGBTTQ+ de 2019 tinha muito o que comemorar: a criminalização da lgbtfobia aprovada pelo STJ, a transexualidade retirada da lista de doenças mentais pela OMS… Crises geram movimento, e la nave va.

 No caminho para o bar, a motorista do Uber, assustada com os tipos que cruzavam as ruas, fez questão de me lembrar da “Marcha Para Jesus”, de três dias atrás, onde o atual presidente do Brasil marcou presença com seu habitual gesto de “mãos armadas”.

“A marcha também foi bonita. Mas menor. O Brasil é plural”, disse ela. Ao final da corrida, me alertou dos perigos de caminhar no meio de tanta gente e se despediu: “Vai com Deus”.

Sim, Deus também havia estado na Parada. “Jesus cura a homofobia”, diziam os cartazes de grupos cristãos. Parece que Deus também pode ser plural.  

 Ainda assim, entre Deus e Etcetera, preferi ir com Etcetera.

 Estávamos exaustos, Etcetera e eu, quando nos encontramos sentados, lado a lado, no sofá de couro preto do bar.

 Eu acabava de chegar do Congresso da FEBRAPSI, em Belo Horizonte, onde havia ministrado o curso “Ambiguidades do Sexual: sexuação e complexo de Édipo”, ao lado de Luís Carlos Menezes. O curso foi fruto de um seminário teórico da SBPSP, proposto e coordenado por ele, no qual nos debruçamos sobre esta temática, num grupo de trabalho, por seis anos.

Minha participação também fez eco ao Grupo de Estudos “Psicanálise e Homossexualidade”, coordenado pelo Oswaldo Ferreira Leite Netto, também na SBPSP, do qual participei pelo mesmo período.

No curso, Menezes e eu procuramos reforçar alguns conceitos, como a radicalidade polimórfica do Sexual psicanalítico e a precariedade do Eu – esta “pobre criatura” – frente às ambiguidades do Sujeito do Inconsciente. Imagem mental que nos organiza, o Eu é insuficiente como representante da verdade do Sujeito, que insiste em buscar uma imagem de si que melhor o represente. Busca mais ou menos radical para uns, mais ou menos investida para outros.

Na clínica, sabemos que sustentar a ambiguidade e o conflito, enquanto esperamos pela palavra do analisando, não é tarefa simples.    

– O que fazer com um menino que se veste de mulher? – exaspera-se uma colega.

 Etcetera Queen estava trabalhando desde muito cedo naquele domingo. Havia tocado como DJ num dos trios elétricos da Parada, passara naquele bar para tomar um fôlego e ainda iria marcar presença numa festa para coroar o dia de luta e glória, até o sol raiar.

Linda, alta, esguia e imponente, uma drag poderosa vestida de mulher-onça, impecavelmente maquiada e elegante. Sua mãe a acompanhava. Era uma das que usavam batas laranja flúor e havia passado o dia todo ao seu lado.

Etcetera estava emocionada, “feliz, grata e transformada”. Aquele dia havia marcado sua vida para sempre. Nos adicionamos no Instagram, trocamos telefones, tiramos uma foto juntos e nos despedimos: “Divirta-se”, disse ela.

 No dia seguinte, assisto a um vídeo-post em seu Instagram. Etcetera mostra outro rosto, de sardas e traços delicados, cabelos curtos platinados e uma sombra de barba que voltava a crescer. Aparentemente na faixa dos 20 anos, corpo singelo, talvez um pouco franzino, de olhos ainda borrados pelos vestígios da maquiagem que, em lágrimas, agradeciam as mensagens de apoio, carinho e admiração da véspera. Agradecia seu patrocinador, agradecia sua mãe.

 Na noite seguinte, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz e a psicanalista Noemi Moritz Kon, no evento “O autoritarismo e a História do Brasil”, organizado pela Associação dos Membros Filiados (AMF) na SBPSP, apontavam o paradoxo de termos a maior Parada do Orgulho LGBTTQ+ do mundo, no país onde mais se mata esta população.

Por mais terrível que seja o dado, talvez não seja tão paradoxal assim, pois enquanto houver alguma saúde democrática, mais vigorosos e exuberantes serão os movimentos que se contrapõem a tamanha força opressora.

Lilia terminou sua fala com uma conhecida citação do “Grande Sertão: Veredas”. Como Guimarães é res publica, tomo a liberdade de também a inserir aqui.

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” 

E então me lembro de outra, da mesma grande obra:

“O senhor já sabe: viver é etcétera…”

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

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Categoria: Homenagens
Tags: diversidade | gênero | orgulho | Política | sexualidade
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