Editorial – novembro/2020

Editorial – Observatório Psicanalítico – novembro/2020

Ensaios sobre acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais do Brasil e do Mundo.

 

 Editorial – novembro/2020

 

O fim do ano de 2020 já se aproxima. Segundo o Dicionário Cambridge, a palavra do ano é “quarentena”. Dizem os editores que foi a terceira palavra mais utilizada em seu sistema de busca. Ao lado dela aparecem “lockdown” e “pandemia”. O ano traz, ainda, o surgimento de uma nova palavra: “hiflex” – abreviação para descrever a modalidade de ensino em que parte dos alunos participam da aula em seu formato virtual, enquanto que outra parte a atenderá presencialmente. Outra “aquisição” que podemos destacar, desta vez em um plano não verbal, é a agora já costumeira saudação “entre cotovelos”. Descobriu-se, entre os leitores do Dicionário, a escolha de termos como “quarenteen”, “lockstalgia” e “coronnial”, para representar o adolescente em quarentena, a nostalgia causada pelo lockdown e os bebês nascidos durante a pandemia do coronavírus, respectivamente. (O Globo, 24/11/20)

 

A pandemia pegou a todos de “calças curtas”. Além do alto número de contaminação e mortes pelo coronavírus (ultrapassamos o número de 170 mil pessoas), tivemos as desigualdades expostas como nunca. Segundo o “Observatório Social sobre a Covid”, as pessoas mais socialmente vulneráveis estão nas ruas e utilizam o transporte público. A maioria, que reside na periferia dos grandes centros, realiza trabalho informal, sem registros, portanto, que possam garantir algum tipo de direito trabalhista. Com a redução da circulação das pessoas nas cidades, muitos serviços e pequenos comércios não viram outra alternativa senão fecharem as suas portas. O desemprego não pára de crescer, e o país segue sem expectativas de aumentar a sua oferta de emprego formal. E, ainda segundo o Observatório, “a maioria que está no ‘home office’ é branca, tem mais escolaridade e melhores salários”. 

 

Neste grupo estamos nós, psicanalistas. Mesmo longe das poltronas “atrás do divã”, seguimos a pleno vapor através do trabalho remoto, com todos os desafios que isso possa representar.  Para não perdermos o tão valioso espaço de trocas de conhecimento e experiências, seguimos realizando atividades conjuntas em espaços virtuais disponíveis: reuniões de trabalhos, reuniões científicas e até os encontros de longa duração, como são os Congressos. Esta mudança imposta ao setting tradicional nos remete para “atrás das telas”. O espaço virtual em nossas vidas tem nos esgotado. Muitos colegas se queixam de extremo cansaço pelo excesso de telas, lives (transmissões ao vivo) a que estamos submetidos. 

 

Desde o inicio deste ano, estamos imersos neste trágico acontecimento pandêmico mundial. Enquanto muitos estão submetidos às graves consequências de um “viver desempregado”, outros sofrem pelo excesso de trabalho. A sensação de habitarmos um mundo desconhecido e ameaçador povoa nossas mentes, enche-nos de medos e incertezas.

 

Perplexos e traumatizados em meio a tanta dor, iniciamos o mês de novembro no Observatório Psicanalítico com as palavras do escritor mato-grossense Manoel de Barros, trazidas pela colega Leila Tannous Guimarães (SPMS) em seu breve ensaio “ESCRITA PSICANALÍTICA: ESPAÇO PARA SONHAR, INTERPRETAR E ESCREVER”. No seu poema “Para Encontrar o Azul do Céu Eu uso Pássaros” o poeta, por sentir-se um “sujeito escaleno” pelo gosto de “fazer defeitos” na sua escrita, procura o padre de sua cidade para um “limpamento de seus receios de adoecer”. O poetizar, como as demais artes, abre caminhos para que possamos acessar a nossa “agramática” pessoal e oferece novos sentidos de expressão do traumático, abrindo, assim, caminhos para a simbolização daquilo que poderia ficar soterrado no concreto da existência. As inquietações, que também cercam os poetas, diz Leila, encontram na “composição da linguagem um modo da mente se revelar”, e sossegar as angústias dos leitores, completamos.

 

“IMUNIZAÇÃO E REALIDADE PSÍQUICA” é o mais novo ensaio de Sylvain Levy (SPBsb), trazendo seu alerta sobre as graves consequências de mais um ataque na saúde pública pelo presidente do país. Como médico sanitarista, além de psicanalista, Sylvain conhece o campo da saúde coletiva, lembrando que “a imunização faz despertar a capacidade de produzir anticorpos escondida em cada um dos vacinados”. Mais de 200 laboratórios no mundo estão trabalhando para encontrar a vacina de que todos precisamos. No entanto, por aqui, “abaixo da linha do equador”, seguimos sob a regência da perversão, “por uma ganância pelo poder, sem medir sequências e consequências, sem necessitar de objeto a ser controlado ou objetivo a ser alcançado. É o poder pelo poder, ou fantasia de onipotência em estado puro. Com esse desejar, o presidente e seus correligionários se auto alimentam em reciprocidades delirantes, coletando ideias isentas da realidade e teorias de conspirações que servem como justificativas de decisões já tomadas ou a serem implementadas.”

 

Viver num continente regido por governos autoritários, marcados por indiferenças aos direitos humanos, levou-nos a escrever o ensaio “AMÉRICA LATINA NO OBSERVATÓRIO PSICANALÍTICO: A Crise da Democracia Ultrapassa as Fronteiras” (Beth Mori – SPBsb, Daniela Boianovsky – SPBsb e Ludmila Frateschi – SBPSP), trazendo para este espaço o rico debate proporcionado por colegas latino-americanos participantes da mesa do Observatório Psicanalítico no Congresso Virtual da FEPAL, ocorrido em outubro. Hoje, além das perturbações causadas pela pandemia mundial, amargamos, como muitos outros países, uma crise política com graves consequências ao viver contemporâneo. “Nosso continente chega a 2020 com a crise do capitalismo e da democracia no mundo ainda marcado pelos efeitos transgeracionais da cruel colonização hispânico-portuguesa, do extermínio dos povos originários e da escravização dos africanos que foram para cá trazidos”. 

 

Na esteira do que apontávamos no artigo acima, presenciamos, neste mês, mais um exemplo dentre os inúmeros casos que confirmam, a cada dia, a violência do inegável racismo estrutural da sociedade brasileira – ao contrário do que querem fazer crer algumas autoridades -, retratado no sexto ensaio da série VIDAS NEGRAS IMPORTAM, escrito por Ane Marlise Port Rodrigues (SBPdePA):  VIOLÊNCIA E RACISMO EM PORTO ALEGRE. Beto Freitas foi “espancado até a morte. Sem direito de defesa. Posso imaginar essa cena ainda na África, no rapto e sequestro dos escravizados, dentro dos navios negreiros e em terras brasileiras desde séculos atrás e até hoje: a cada 23 minutos uma pessoa negra é morta no Brasil.” E este “mesmo ódio racista (…) segue em políticas de extermínio através da desigualdade social e econômica vigentes”. Não estamos livres dos efeitos nefastos da escravidão. “Todas as estatísticas – salário, acesso à educação de qualidade, acesso à saúde, índices de criminalidade, etc. – denunciam que a população negra brasileira sofre mais violência, discriminação e é mais excluída que os brancos.” (Foro de Teresina, 22/11/20). 

 

Em meio a tantas dores e perdas, terminamos o mês com dois ensaios sobre o sofrimento psíquico e a presença das drogas, lícitas e ilícitas. Leonardo Siqueira Araújo (SBPMG), com PÍLULAS MÁGICAS, CÉREBROS FECHADOS e Julio Hirschhorn Gheller (SBPSP), EL PIBE DE ORO SE FUÉ, oferecem reflexões para pensarmos a relação conflitiva, ainda hoje, entre a medicina e a psicanálise. Leonardo apresenta um breve histórico do paradigma biologicista, centrado no uso de medicamentos psicotrópicos. Por razões econômicas, o trabalho do psiquiatra passou a ser pautado pela indústria farmacêutica, que fornece “bases para políticas governamentais ou para definição de planos de saúde”. Sabe-se que os “tratamentos medicamentosos prometem uma resposta simples à questão do sofrimento mental”. Julio apresenta a história de Diego Maradona, falecido na semana passada, que durante muito tempo de sua vida sofreu de dependência química. “A cocaína possivelmente exacerbou sua tendência à onipotência e ciclotimia, alternando estados hipomaníacos e euforizantes com estados depressivos.” Excepcional jogador de futebol, reconhecido internacionalmente pelo seu “mágico pé esquerdo”, teve uma vida pessoal conturbada. “Um exemplo da tragédia da hybris, da desmedida. Ele atingiu o mais alto dos picos em sua arte, mas teve que pagar um preço considerável, como que castigado pelos excessos.” 

 

Ao pensarmos na dimensão das angústias deste ano de 2020, retomamos o ensaio de Leonardo, ao enfatizar que como seres sociopolíticos devemos incluir as questões de nosso tempo em nossas análises, levando em conta os acontecimentos que atravessam e adoecem psiquicamente, abordagem que encontramos, aliás, nos mais variados testemunhos publicados neste Observatório, seja através de seus ensaios ou de seus comentários.  Concordamos que o trabalho com a psicanálise segue “vinculado com a verdade, mesmo que eternamente encoberta e desconhecida, mas que não nos impede de tentar caminhar em direção a ela.”

 

Como psicanalistas temos muitas tarefas pela frente. 

 

No OP seguimos entendendo que a escuta psicanalítica precisa continuar atenta aos acontecimentos sociopolíticos, culturais e institucionais. E que é preciso manter nosso “desejo de ensaio” (Tania Rivera). 

 

Os resultados recentes das eleições municipais no Brasil reafirmam a forte presença branca, masculina e heterossexual. Algumas mudanças parecem estar em curso na política governamental. A esquerda sinaliza uma maior capacidade de articulação em projetos e alianças, enquanto à direita vemos um enfraquecimento de posições extremas. “O grande vencedor foi a pauta social”, segundo algumas análises de cientistas sociais e políticos. “Candidatos à esquerda e à direita que deixaram essa temática evidente durante o processo eleitoral foram eleitos ou obtiveram resultados politicamente importantes, apesar da derrota.” (El País, 30/11/20). Diferentemente do discurso fanático, com o ódio ao diferente, de 2018, os vencedores das eleições de 2020 pautaram seus discursos em programas de governo de áreas importantes como a saúde, a educação e o emprego. Chama atenção o uso das palavras consenso, diálogo e união, com maior representatividade de minorias e movimentos sociais. O desempenho das mulheres também cresceu, com o aumento da presença de negras (principalmente no Rio); as mulheres trans também marcaram sua força: 25 vereadoras eleitas, sendo que São Paulo elegeu Erika Hilton, mulher negra, trans e periférica, como a mais votada, dentre algumas boas noticias que chegam até nós.

 

No cenário internacional, os EUA também derrotaram nas urnas o discurso de ódio. Ao mesmo tempo, o índice de abstenção que tivemos neste domingo mostra o longo caminho a ser percorrido na reconstrução da crença na representatividade de nossa democracia. Que o campo da reflexão, do diálogo, da tolerância às diferenças e ao contraditório possa ser cada vez mais fortalecido. E neste terreno, esperamos poder contribuir, cada vez mais, com o pensamento e o trabalho psicanalítico comprometido com a busca da verdade interna de cada um de nós.

 

Amanhecemos no último dia de novembro com a sensação de que é possível sonhar tempos mais comuns, sem grandes sobressaltos…

 

Curadoria OP

 

Beth Mori (SPBsb)

 

Daniela Boianovsky (SPBsb)

 

Ludmila Frateshi (SBPSP)

 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores).

 

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Os ensaios do OP são postados no site da Febrapsi. Clique no link abaixo:

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Tags: Editoriais
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