Lugar de “cale-se”! por Maria Rita Kehl

No A Terra é Redonda

O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público?

Decidi participar do debate entre setores do Movimento Negro e Lilian Schwarcz a respeito da Beyoncé, porque admiro muito tanto Lilian quanto o MNU. Acompanhei com interesse a divergência; admiro a Lilian por sua retratação pública, considerando que ela tenha sido convencida pelas críticas do Movimento Negro. Não gosto de imaginar que tenha feito isso apenas porque lhe sugeriram que calasse a boca. Acredito que a palavra, quando utilizada para argumentar e convidar o outro a pensar e debater conosco, seja o melhor recurso para resolver, ou ao menos dialetizar, ideias e valores situados em polos aparentemente opostos do vasto campo da opinião pública.

Decidi agora, a partir do que aconteceu também com Djamila Ribeiro, debater essa questão de Movimentos Identitários e Cultura do Cancelamento. Apesar da enorme diferença entre minha experiência de vida e as experiências de vida dos descendentes de escravizados – prática horrenda que, no Brasil, durou 300 anos! – eu nos considero iguais em direitos e na capacidade de compreender o mundo para além de nossos diferentes quintais. Sim, estou ciente de que o quintal onde nasci é privilegiado, em relação ao de Djamila. Mais ainda em relação ao de muitos descendentes de africanos pobres. Peço desculpas se mesmo assim insisto em me considerar, como no verso de Baudelaire, sua igual, sua irmã.

O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal? O que seria do debate público? Cada um na sua casinha…? O que seria da solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas experiências que nós? Bom, tem gente que é assim, não sai de seu cercadinho. Não pertenço a esse grupo, e creio que você, Djamila, também não. Se eu fosse torturada você se importaria, imagino, a despeito da cor da minha pele. O mesmo vale de mim para você.

Meu “lugar de fala” é aquele de quem se identifica com a dor dos outros. Mas também é o de quem se permite criticar atitudes preconceituosas ou injustas, venham de onde vierem. Embora seja importante reconhecer a dignidade da condição de quem é vítima de alguma opressão – econômica, racial, sexual – não há motivos para acreditar que os oprimidos sejam santos. Isso não tem nenhuma importância. Você, “pecadora” como todos nós, foi vítima de discriminação por parte de seus irmãos de cor, membros do Movimento Negro Unificado.

Considero as políticas identitárias como recursos essenciais para impor respeito, exigir reparação por todos os crimes do racismo assim como lutar (ainda!) por igualdade de direitos. Abomino todas as formas de discriminação baseadas na cor da pele, no país de origem, na fé religiosa ou nas diferenças de práticas culturais. Nenhuma “palavra de ordem” se manteve mais atual, ao longo dos séculos, do que o lema da Revolução Francesa: igualdade, liberdade e fraternidade. Me parece que o que está em causa, quanto ao que acontece com pessoas de descendência europeia e as descendentes de africanos, seja a “igualdade”. Como considerar iguais pessoas oriundas de classes sociais, grupos étnicos e experiências de vida tão desiguais?

Mas, sim, em alguns pontos somos iguais. Em direitos (embora, no Brasil, tantos deles sejam desrespeitados). Em dignidade. Na capacidade de produzir cultura, seja musical, pictórica, teatral. Nesse aspecto da produção de cultura, entra em causa a liberdade de expressão. Podemos participar, sem pedir licença a ninguém, de todos os debates que nos interessem. Podemos nos pronunciar a respeito de problemas e questões que não fazem parte de nosso dia a dia. São questões dos “outros”. Mas que nos importam. Queremos falar. Se a palavra não é livre, o que mais será? Mas, claro: abomino a palavra que induz a linchamentos virtuais.

Não quero imaginar um mundo em que cada um de nós só pudesse dialogar com seus supostos “iguais” em gênero, cor da pele ou classe social. Senão como pude eu, branquela de classe média urbana, ter sido aceita pelos “compas” do MST com quem trabalhei entre 2006 e 2011, até ingressar na Comissão da Verdade? Como pude ser respeitada entre grupos indígenas para relatar, no capítulo que me coube escrever, o genocídio sofrido por eles durante a ditadura se nunca, antes disso, tinha sequer pisado em uma aldeia?

Durante o nazismo, um dos períodos mais horrendos que a humanidade atravessou, algumas famílias alemãs não hitleristas abrigaram famílias judias em suas casas, salvando muitas delas. Alguns esses alemães antirracistas foram denunciados por seus vizinhos e assassinados pela Gestapo. Mesmo pertencendo à “raça ariana”, foram mártires em sua ação solidária contra o genocídio.

Meu sobrenome é alemão. Meu avô, muito carinhoso comigo na infância, era antissemita por razões “eugenistas”. Entendi, na adolescência, que ele a defendia supremacia da “boaraça”. Que conceito desprezível, para dizer o mínimo. Mais justo é dizer: que conceito criminoso. Nenhum dos seis netos dele compartilha aquelas ideias. E defendo que nenhum de nós deva ser calado num debate sobre “raça” por conta de nossa ascendência e de nosso avô.

Aliás, por conta dessa essa ascendência que não escolhi (para mim, ele era só um doce avô), talvez o Movimento Negro me considere a última pessoa autorizada a dialogar com seus ativistas. Mas quero correr o risco. Acima de todas as diferenças, aposto sempre na livre circulação da palavra e do debate. E afirmo que nosso habitat “natural” é esse caldo de culturas que constitui o vasto mundo da palavra – fora do qual, o que seria do ser humano? Como escreveu Pessoa, apenas um “cadáver adiado que procria”.

Já participei, com alegria, de muitas manifestações do dia da Consciência Negra. Tenho inúmeras afinidades com a cultura que seus antepassados, generosamente, nos legaram. Sou do samba, desde criancinha. Meus tios maternos, boêmios, tocavam e cantavam. “Caí no caldeirão”, como Obelix. Às vezes penso que sei, de cor, todos os sambas desde o final do século dezenove até o final do vinte. Sou filha de Santo: que pretensão, não é? Nem pedi para isso acontecer, foi o santo que “mandou”. Essa filiação me encoraja muito na hora das dificuldades.

Escrevi um ensaio sobre a história do samba que começa com o abandono dos escravizados depois da Abolição; é claro que o “sinhozinho” que explorava trezentos africanos, ao ter que pagar pelo menos um salário de fome a cada um, preferiu botar duzentos e cinquenta na rua e explorar até o osso os outros cinquenta. Ao contrário do que aconteceu em alguns Estados do sul dos Estados Unidos, aqui ninguém recebeu nenhuma reparação pelos abusos sofridos durante gerações. Foi preciso que um operário chegasse ao poder para instaurar algumas políticas reparatórias, como as cotas para afrodescendentes ingressarem nas universidades ou a legalização das terras quilombolas.

Nos Estados Unidos, país hoje governado por um dos ídolos do desgovernante brasileiro, existe uma grande população afrodescendente de classe média. Um descendente de africanos presidiu o país, por dois mandatos, de forma relativamente progressista – até onde o congresso permitiu. Outro deles é um cineasta genial. A produtora de Spyke Lee se chama Tree acres and a mule, em referência a reparação recebida por seus antepassados depois da abolição. Como se Lee nos dissesse: sou cineasta por causa daquele pedaço de terra. Vamos também contar os compositores, músicos e cantores de jazz. Tocavam em espaços que os brancos não racistas nunca foram proibidos de frequentar e ouvir.

Aqui no Brasil, diante do abandono dos escravizados recém libertos, os brasileiros descendentes de portugueses, italianos e outros europeus racistas estabeleceram uma associação vergonhosa entre as pessoas de pele escura e a “vadiagem”. Uma ruindade a mais, entre tantas outras. Mas os ex-escravizados, sem trabalho depois da Abolição [1], que se reuniam na Pedra do Sal, na zona portuária do Rio, a espera do trabalho pesado de ajudar a descarregar navios que chegavam, nas suas horas vagas criaram o samba: uma das marcas mais fortes da cultura brasileira. Que nunca nós, brancos, fomos proibidos de cantar e dançar. Na Bahia, surgiram os terreiros de Candomblé, que não atendem apenas os negros. Brancos podem se consultar e se for o caso, a mando do santo, se filiar.

Para que você não pense que o atrevimento de me identificar com a riquíssima cultura que você compartilha com “mais de cinquenta mil manos” seja um “abuso” exclusivo em relação aos afrodescendentes, te conto que sou incuravelmente heterossexual, mas participo todos os anos da Parada Gay. Nenhum de meus amigos gays, um dos quais já sofreu perseguições homofóbicas no trabalho, me desautorizou a me identificar com eles. Mas também nenhum se ofendeu nas ocasiões em que discordamos sobre algum assunto, mesmo referente à sua causa identitária.

Às vezes, no debate, me convenceram. Outras vezes eu os convenci. Liberdade de opinião combinada com igualdade de direitos podem dar resultados excelentes.  No entanto, você sabe, existem negros racistas – não contra os brancos, o que até seria compreensível. Contra outros negros. Sérgio Camargo, que presidiu por curto tempo a Fundação Palmares no atual governo, teve que ser demitido até mesmo por Bolsonaro por conta de declarações racistas. [Na verdade, embora seu afastamento tenha sido objeto de ação do MPF vitoriosa em primeira instância, o governo Bolsonaro recorreu e Camargo foi reconduzido ao cargo].

Uma das razões dessa minha iniciativa de escrever, em público, para os companheiros do MNU, é que acredito que sejamos iguais também na capacidade de empatia. Não preciso ter sido amarrada no tronco para ter horror disso. O país inteiro, até mesmo os indiferentes, sofre de baixa estima por conta de nosso longo período escravista. E nós, brancos antirracistas, somos sim capazes de nos colocar emocionalmente no lugar daqueles que ainda sofrem o que nunca sofremos. No entanto, não tenho dúvidas de que até hoje os descendentes de africanos sofreram e sofrem, no Brasil, muito mais do que os descendentes de europeus.

Somos iguais. Não em experiência de vida, nem na cor da pele. Em direitos, em dignidade e, como tento fazer agora, em liberdade de expressão. Eu desrespeitaria os membros do Movimento Negro Unificado se fosse condescendente. Ou se eu fingisse concordar para não sofrer linchamentos virtuais. A consideração e o respeito é que me autorizam, em casos como esse, a discordar. De igual para igual. Por isso não aceito que, em função de nossas origens diferentes – e dos privilégios dos quais tenho consciência – os companheiros membros do MNU eventualmente exigissem que eu calasse a minha.

Para terminar, deixo para os leitores que ainda não conhecem a letra de uma das canções mais tocantes já escritas para denunciar um dos muitos atos de barbárie racista, nos Estados Unidos: um ex escravizado que foi enforcado em uma árvore. Tenho certeza de que muitos de vocês a conhecem. Aí vai, na versão do poeta (branco) Carlos Rennó:

Strangefruit
(Fruta estranha)

Árvores do sul dão uma fruta estranha:
Folha o raiz em sangue se banha:
Corpo negro balançando, lento:
Folha pendendo de um galho ao vento.

Cena pastoril do Sul celebrado:
A boca torta e o olho inchado
Cheiro de magnólia chega e passa
De repente o odor de carne em brasa

Eis uma fruta que o vento segue,
Para que um corvo puxe, para que a chuva enrugue.
Para que o sol resseque, para que o chão degluta.
Eis uma estranha e amarga fruta [2]

Ao digitar esses versos, já tenho vontade de chorar. Vocês devem saber que ela não foi composta por um negro e sim por um judeu novaiorquino, Abel Meeropol (com pseudônimo de Lewis Allan). Como desautorizá-lo com o argumento de que ele não teria o “lugar de fala” apropriado? Para estender esse argumento até o absurdo: como conseguiríamos sequer dialogar com nossos não-iguais? A empatia e a solidariedade seriam sempre hipócritas? A proposta é “cada um na sua caixinha”? Não quero viver em um mundo desses.

*Maria Rita Kehl é psicanalista, jornalista e escritora. Autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo).

Notas

[1] Evidentemente o senhor de escravos que explorava 500 indivíduos, ao ter que lhes pagar ao menos um salário de fome, preferia mandar 400 para a rua, ao Deus dará, e abusar ao máximo da força de trabalho dos cem restantes.

[2] Southern trees bear a strange fruit/ Blood on the leaves and blood at the root/ Black body swiging in the Southern breeze/ Strange fruit hanging from the poplar trees. //Pastoral scene of the gallant South/ The bulging eyes and the twisted mouth/ Scent of magnolia sweet and fresh/ And the sudden smell of burning flesh! // Here is a fruit for the crows to pluck/ For the rain to gather, for the wind to suck/ For the sun to rot, for the leaves to drop/ Here is a strange and bitter crop.

Foto: Damião A. Francisco /CPFL Cultura

Comments (12)

  1. Mil perdões mas imagino que os textos críticos não devem tecnicamente servir de desabafo ou coleguismo defensivo.
    Respeito bastante a Lília, acho fantástica, porém, escrever um livro sobre branquitude e juntar-se aos best sellers feminismos plurais coordenado por e bíblicado como coleção e achar que não seria cancelada na primeira frase não popular que pronunciasse, não posso crer ser ingenuidade !
    Pedir desculpa me feriu como fã, pois a trajetória é bela !
    Porém, melhor pedir desculpa e voltar ao escudo da usp. Pena !
    Como intelectuais não tem como dizer que não merecia o cancelamento ! Por que merece .
    Os grupos vulneráveis com o belo título de insterseccionalidade é título de uma coletânea específica que desde do prefácio nunca mentiu sobre o sentido da coleção !
    Agora não tem jeito! É pedir desculpas, mesmo sabendo que não errou. Ler novamente o capítulo sobre lugar de fala.
    E talvez todos juntos, e , daí avaliar se existe alguma saída para sua branquitude ?
    Com todo respeito
    Minha opinião sobre a coleção e o rótulo da branquitude.

  2. Que tristeza ler mais esse texto confirmando que o grupo “brancOs antirracistas” ainda gera tanto desserviço a nossa luta.
    Privilégio é antônimo de igualdade. Não somos iguais! Enquanto você puder usufruir da afirmação “eu sei que sou privilegiada” em vez de sair da sua posição de privilégio, nunca seremos iguais, e nunca terá propriedade pra falar da nossa luta que é justamente contra os resultados negativos de seu privilégio herdado pelas atrocidades de eugenistas, traficantes e compradores de escravizados.
    O lema que as pessoas brancas tanto gostam de lembrar da Revolução Francesa – “igualdade, liberdade e fraternidade”- nunca valeu ao povo preto Haitiano e outras colônias massacradas pós esse lema da revolução francesa. É, na verdade, “Igualdade aos brancos como eu”.
    São as pessoas brancas que geraram o racismo e o mundo “cada um na sua caixinha” que você não quer viver, nós somos os que resistimos todo esse tempo contra esse mundo desenhado e herdado por pessoas como você. Nossa “caixinha” são favelas e periferias muito bem controladas pela polícia que pessoas brancas criaram para que nós não saíssemos dessa “caixinha”.
    O seu desespero e de outras pessoas brancas gritando “não podemos viver em uma sociedade de cancelamento” é justamente esse: Nós estamos saindo! Não vamos mais ficar nessas caixinhas “cancelados” enquanto vocês pintam, fazem poemas e teses sobre nossa luta e sofrimento. Não vamos mais gerar conteúdo para “jornalistas, historiadores, psicanalistas, etc” brancos, que ainda usam isso como um produto para obterem renda.
    Enquanto você escreve uma coluna para reivindicar o seu “direito de fala” sobre a luta antirracista usando trecho de Fernando Pessoa, nós resistimos com a própria vida à violência do racismo que te dá o privilégio de estar em uma sala tranquila para escrever.
    Enquanto um branco “antirracista” fica famoso com o poema sobre o ex-escravizado morto pendurado na árvore, o homem negro pendurado na arvore não teve direito nem a ter um nome pra ser lembrado. O nome do seu poeta você lembra bem, e até o pseudônimo, o nosso ficou como o “ex-escravizado”. Eu não tenho vontade de chorar com esse texto, eu tenho raiva! Você traz um poema que romantiza a violência vivída no passado, e a mesma violência pode ser lida no jornal de hoje, homens negro, como eu, sendo assassinados por policiais para manter o mundo de “cada um na sua caixinha” feito pelas famílias eugenistas, de forma muito bem Institucionalizada.
    Leia sobre Lugar de Fala com a mesma dedicação que lê autores brancos. Nossa resistência com a própria vida não precisa dos seus achismos embasadas em outros escritores brancos achistas ou de “esperiências universais”. Você não vive o racismo, só o pratica.
    Nós estamos saindo do cancelamento. Vocês têm que sair do protagonismo.
    Sua carreira não equivale a 10% das mulheres da minha família que tinham que retirar o copo de chá da elite enquanto escrevia colunas sobre o que é ser antirracista.

  3. O lugar do branco na luta antirracista é confrontar seus iguais racistas. E olha bem que tem de monte na sociedade pra ser confrontados. Que acham que querem deslegetimar uma pessoa preta Beyoncé ou o Movimento Negro, o taxando de identitarista, no minino é o cúmulo de um narcisismo doentio que coloca o véu para as vicissitudes de sua branquitude coletiva. E o fim, a branquitude quer sempre os holofotes.

  4. A ideia das pessoas membros de comunidades, coletividades, terem direito a voz própria para o processo de deliberação; de que ninguém consegue perfeitamente estar no lugar deles e deve partir do consentimento deles a legitimidade de deliberações sobre si, é a essência da ideia de democracia. É a luta pela democracia. Logo, ela existe não só muitíssimo antes mas têm existência independente da filosofia do “lugar de fala”, que não coincide com a filosofia da democracia, antes concorre contra ela.

    Esteve presente em graus variados: no discurso de Péricles em Atenas; entre o povo Zande na África Central, na Liga das Seis Nações do povo Iroque, em tripulações piratas do século XVIII. O pulso da filosofia da democracia se deparou sempre com o dilema: quem é o “povo”, sujeito no/do ambiente da deliberação democrática? Onde estaria uma circunscrição delimitadora dos que não estariam incluso, os “de fora”? Daí vemos que frequentemente elites buscaram ceder anéis pra não perder os dedos e excluir “classes perigosas”. É onde entra então a discussão da ampliação máxima do grau democrático e o levante das “classes perigosas” para participarem de igual pra igual.

    Já a matriz da filosofia do lugar de fala não tem a ver com isto. Ela tem como axioma que realidade é algo criado por convencimento mútuo de grupos de sujeitos que se reconhecem numa identidade. “Realidades” seriam produtos do ponto de vista e da linguagem política de cada grupo que se reconhece numa identidade, não havendo “realidade” palpável que balize criteriosamente justificativas de crença (pressuposto da filosofia da democracia, para viabilizar o fórum deliberativo). As justificativas de crença adviriam da subjetividade coletiva e seu parâmetro é o que passa pela aceitabilidade da política da linguagem do grupo. Não haveria uma razoabilidade que transcendesse as fronteiras das aceitações convenientes para a política da linguagem dos grupos. Crenças se justificam quanto “ao que é palatável para as predefinições mais convenientes pautadas por nosso grupo”.

    Muitos da filosofia do lugar de fala até chegam a ouvir uma trilha sonora épica de fundo ao pensar nestes termos. Mas veja bem os debates que ocorrem nesta pandemia sobre “negacionismo”. É inadequado pensar que grupos direitistas se posicionem contra a ciência. Eles não aceitam a ciência “dos de fora”, dos que estão “numa outra realidade”. Mas acolhem muito bem quando algum cientista, especialista, médico etc. “de dentro” do grupo de auto-idetificação defenda o que é aceito e conveniente, de forma predefinida. Os “de fora” estão falando numa outra realidade e não há realidade em comum para mediar uma baliza crítica. O pessoal da filosofia do lugar de fala não pode zombar porque fazem a mesma coisa! Têm uma lógica semelhante, da realidade como uma criação comunal. Em outros contextos agiriam igualmente, “quem está falando é o de fora e se não passar no filtro do que aceitamos previamente, não é real para nós”. Os “de fora” não têm direito a falar nada que afete ou que concerne a “nós, de dentro”, não “aceitamos” isso de argumentação livre para justificar a crença o mais consistente possível. Pois não há uma realidade para fora do criado e aceitado pelo grupo, para ambientar o conhecimento e a discussão crítica sobre como as coisas são.

    Sim, estou comparando a filosofia do lugar de fala com balizes das ideias da nova direita, em termos da lógica interna. Certos grupos que se auto-identificam na nova direita nunca vão aceitar o que “os de fora da identidade” digam sobre sua realidade, ou crenças/asseverações dos “de fora” que atinjam sua realidade.

    A filosofia do lugar de fala concorre com a filosofia da democracia porque não é compatível com o interculturalismo e transculturalismo que estão no sentido da dinâmica democrática. Ela essencialmente se arraiga num multiculturalismo de particularismos essencialistas. Recentemente assisti ao “Trono Manchado de Sangue” do Kurosawa e pensava como, na lógica interna do “lugar de fala”, o diretor japonês fez uma “apropriação cultural” contra a cultura inglesa com suas tradições shakespeareanas elisabetanas.

    O apelo tem peso exclusivamente interno e pra tentar constranger no grito quem não é “de dentro” mas pende suas sensibilidades sociopolíticas, é um instrumento de poder sobre a consciência, interditando a necessidade de crivo lógico, de inferências sobre melhor justificação. Junta isso com a nova direita, a possibilidade lógica da desembocadura, nos termos destes “solipsismos coletivos”, é distribuir armas pra todo mundo brigar e os que sobrarem de pé governam o mundo.

  5. NOTAS:
    “O que seria da democracia se cada um de nós só fosse autorizado a se expressar em relação a temas concernentes a sua experiência pessoal?”

    O que seria se não nos visemos nos lugares de poder institucional, na academia e estivéssemos constantemente sendo degradados por nossa cor?

    “O que seria do debate público?”

    O que seria se não tivéssemos voz nos lugares de debate público e fossemos a minoria das minorias, mesmo sendo parte expressiva da população brasileira, mas desde que eramos res, nas definições jurídicas dos códigos de comércio, somos o resultado da violenta supressão pela desigualdade econômica?

    “Cada um na sua casinha…? O que seria da solidariedade, essa atitude baseada na identificação com o nosso semelhante na diferença, se só conseguíssemos nos solidarizar com quem vive as mesmas experiências que nós?”

    E se não entendessem essa diferença que nos apresenta para o mundo? E se fosse impossível traduzir o que é ser cancelado economicamente, aprisionado e desprestigiado por não ser como os padrões dominantes determinam?

    “Bom, tem gente que é assim, não sai de seu cercadinho. Não pertenço a esse grupo, e creio que você, Djamila, também não. Se eu fosse torturada você se importaria, imagino, a despeito da cor da minha pele. O mesmo vale de mim para você”.

    E se não conseguíssemos instituir a legitimidade de dizer que o nosso lugar é diferente?

  6. Concordo com minha xará, Laura. Talvez à crítica à Lilia não foi compreendida, e esse texto acabou reforçando de onde ela parte. É sobre nós, com todas as nossas chancelas e espaços que nos foram abertos, redistribuirmos a gentileza e o privilégio e abrir, partilhar espaços. O pedido de desculpas de Lilia só reforça a necessidade branca, capitalista e colonizadora de – mesmo quando não se tem condições para responder a um convite feito as pressas, aceita-se ocupar um espaço que poderia/deveria estar sendo ocupado por outrem, que estão mais a par das questões, que possam falar com o próprio corpo, talvez. O que as militâncias estão colocando é que não se precisa de outras subjetividades para falar por elas, e fazer críticas por elas, esses corpos, essas experiências querem sua própria voz, compartilhar seu próprio vocabulário. E cabe a nós, que sempre ocupamos os lugares de voz, abrir passagem – e não ficar defendendo o nosso valor e direito em nós mantermos onde estivemos/estamos e, se depender da cultura hegemônica, estaremos. Cabe a nós, partilhar esses espaços.

  7. Comento nessa mesma linha no meu novo vídeo no YouTube:
    “Lugar de fala; racismo; Lilia Schwarcz e Beyoncé”
    https://www.youtube.com/watch?v=mB5lxbXlyjA

    Lugar de fala”, por si só, não é argumento!
    Essa falácia foi usada para crucificar a historiadora #LiliaSchwarcz, que teceu críticas ao novo filme da #Beyoncé. Ao invés das pessoas apresentarem contra-argumentos, se reduziram a atacar Lilia via ad hominem. Vários artistas negros indo nessa onda, como a cantora Iza, o ator Ícaro Silva, a Paula Lima e a Maíra Azevedo (Tia Má). Não fizeram minimamente a defesa do que o filme, #BlackisKing, apresenta, simplesmente ofenderam Lilia e disseram que ela não podia falar nada por ser branca, já que o filme pretende retratar a África e o povo negro. Como assim?! O dito não se reduz a quem diz. #LugarDeFala tem relevância para narrar um sentimento, para dar voz a excluídos, não para sustentar qualquer coisa sem mais, nem para impedir as pessoas de falarem. Agir assim é um desfavor na luta contra o #racismo.

    Sou professor de Filosofia, sofri racismo duas vezes por porteiros negros da Faculdade de Medicina da UFMG, por ter o tom de pele mais escuro do que o dos alunos de medicina. Narro as situações no vídeo.

  8. Finalmente estamos falando em voz alta e nao sussurrando pelos corredores que temia necessidade de empatia. O “lugar de cale-se” afasta a potencial solidariedade que os não-negros têm pela causa anti-racista. Grata, Maria Rita Kehl, por esse texto tão necessário!

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